Em Caná da Galileia...


Banhos de lama

Como certamente já todos nos apercebemos, o país anda numa fúria a cortar árvores, para cumprir a lei de limpeza das matas e evitar mais mortes humanas em fogos florestais. Bem ou mal feita, a limpeza vai acontecendo, e Náturia – o “belo” descampado à volta da nossa casa – não escapou à fúria. Numa destas tardes, ao chegar da escola, os meninos deram com um enorme camião carregado de troncos. As árvores de Náturia já não existiam.

Enquanto os rapazes observavam a azáfama dos trabalhadores, com as suas escavadoras e os seus guindastes, a Sara desatava a chorar, com lágrimas e tudo. “Náturia já não tem árvores!” Dizia ela por entre soluços. “E também destruíram a nossa cabana de troncos! E a oficina de tábuas!” Fiquei sem saber como a consolar.

O Francisco chegou quase ao mesmo tempo da universidade, de comboio, como é hábito. Também ele ficou estarrecido perante a limpeza do seu reino encantado de infância. “Deitaram abaixo a minha árvore preferida, a árvore onde eu subi tantas vezes…” Suspirou. E acho que foi só por ser crescido que não chorou.

“Meninos, por que não aproveitam os ramos caídos para brincar?” Sugeri, tentando levantar o humor familiar.

“Boa ideia!” Disseram todos. E apesar do vento e do frio, lá foram eles brincar.

Pouco a pouco, a tristeza deu lugar à alegria. Uma árvore caída é um convite à aventura! Alguns minutos mais tarde, a Sara apareceu junto de mim. Tinha uma pergunta, em nome dos irmãos:

“Mamã, está lá fora uma poça de lama enorme. Podemos brincar nela?”

“Ora aí está uma boa ideia!” Concordei. “Claro que sim. Uma poça de lama é um lugar magnífico para brincar. Diz aos manos que pode ser!”

Não vos vou descrever a alegria, as gargalhadas, o barulho lá de fora, quando os quatro mais novos, com o André e a Raquel (nossos “filhos emprestados”) decidiram fazer uma batalha de lama. Nem a surpresa dos condutores que, ao passar na rua, abrandavam, abriam as janelas e esfregavam os olhos, sem acreditar na visão que lhes era concedida. Também não vos vou falar das lavagens que foram precisas para, no dia seguinte, separar a lama da roupa e a roupa da lama. Nem do estado da casa depois de os meninos entrarem para um merecido banho…

“És a melhor mamã do mundo! Ninguém mais nos deixaria brincar assim! Um dia também vou deixar os meus filhos brincar nas poças de lama, mas ainda vou fazer melhor: vou deixá-los brincar de fato de banho”, dizia a Lúcia, já na sua caminha, quando lhe dei um beijo de boas noites.

Deixo-vos as imagens:

As árvores brutalmente arrancadas em Náturia fizeram-me perceber o quão agarrados estamos todos – mesmo os pequeninos como a Sara – às nossas coisas, aos nossos sonhos, ao nosso pequeno espaço. Contemplando a devastação do nosso reino encantado, repeti uma oração de Santa Teresa de Calcutá, oração que todas as manhãs rezo diante do sacrário, no Santuário Nossa Senhora Auxiliadora:

Jesus, dou-Te tudo o que quiseres tomar,

tomo tudo o que me quiseres dar!

A felicidade não está em possuir, nem está na perfeição ou na harmonia com que se desenrolam os nossos dias. A felicidade é feita de pedaços de lama presos à roupa, de brincadeiras em ramos partidos, de aventuras em descampados abandonados. Que importa se não vivemos os nossos sonhos? Que importa se outros os destroem e os lançam por terra, como árvores caídas? Que importa que nos tirem tudo o que ao longo de anos de entrega fomos construindo? Numa carta à sua irmã Celina, Santa Teresinha afirmou:

A única felicidade sobre a terra é de me aplicar a achar sempre deliciosa a parte que Jesus nos dá.

Mesmo que essa parte seja um monte de ramos cortados ou uma enorme poça de lama…

4 Comments

  1. Uma bela inspiração, para nos despedirmos do Inverno… e do reino encantado de Náturia. Nesta Quaresma, importa renunciar com alegria! Beijinhos e… coragem, para a mãe e para a limpeza da lama…

  2. ❤️ obrigada pela partilha

  3. Raimundo Flores

    Uma reflexão consoladora e, sobretudo, uma lição de humildade, generosidade e, porque não, de grandeza de espírito familiar. Obrigado pelas lições que nos dá (quase) diariamente.

  4. Este post é delicioso… não só pela mensagem que encerra, mas também porque percebo a enorme generosidade da Teresa em aceder ao pedido das crianças (com todo trabalho subsequente que daí adveio). E, ainda, pela delicadeza e respeito extremos que as crianças tiveram em perguntar primeiro se podiam, efetivamente, brincar na lama. Parabéns a todos!

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