Em Caná da Galileia...


Domingo de Ramos, ano B

Reflexão semanal sobre as leituras do próximo domingo, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

DA ACLAMAÇÃO À CONDENAÇÃO

Hossana! Bendito o reino que vem, o reino do nosso pai David!” O Domingo de Ramos amanhece ao som de gritos de alegria. O Senhor vai entrar em Jerusalém montado num jumentinho! Seguindo atrás, estendendo os nossos ramos, também nós entramos em Jerusalém, pela porta de qualquer igreja paroquial… A simplicidade de Deus!

A missa começa. Pouco a pouco, os ramos vão baixando, a alegria vai cedendo, e uma nostalgia profunda apodera-se de nós. Como podemos passar tão depressa da aclamação para a condenação? Como podemos ser assim para Contigo, Jesus? E somo-lo tantas vezes!

“O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo”, diz-nos o Servo de Deus em Isaías. Estaremos nós também de ouvidos abertos? É que o que vamos escutar vai doer.

O salmo arrasta-nos, num torpor angustiado, através da Paixão de Jesus. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” Deus desceu até ao mais fundo que era possível descer na sua identificação connosco. S. Paulo explica: “Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio…” Diante dos abismos de dor que se abrem neste mundo, saibamos, com certeza absoluta, que Deus já lá esteve. É a primeira lição da Paixão.

Chega a hora do Evangelho. De pé, escutamos. Onde estamos, enquanto Jesus Se entrega por nós?

Em casa de Simão o Leproso, uma mulher quebra um vaso com perfume caro, e com ele unge a cabeça de Jesus. Desperdiça todo o seu dinheiro, dizem os que assistem… Seremos nós como esta mulher, capaz de “desperdiçar” tempo, dinheiro, talentos, uma vida inteira no serviço do Senhor? Ou somos dos que criticam sem nada fazer?

Na Última Ceia, Pedro insiste com Jesus: “Ainda que tenha de morrer contigo, não Te negarei.” Ah, quanta vaidade! Quanta segurança na sua virtude pessoal! Como é fácil falar quando tudo corre bem… Mas quando chega a tribulação, os Pedros deste mundo caem adormecidos e, procurando aquecer-se ao lume dos respeitos humanos, negam a sua fé. Seremos nós assim?

Os discípulos, assustados, fogem. Não suportam a visão do Mestre açoitado e chacoteado. É grande a tentação de fugir, quando a Igreja surge sob o signo da cruz. Para organizar festas e romarias, estamos em força; mas para servir os doentes, visitar os presos, fazer adoração noturna, trabalhar com grupos difíceis, proclamar a sã doutrina, etc, dizemos que não temos tempo nem jeito… Quando a mãe de Dom Bosco lhe disse: “Filho, não posso continuar aqui a ajudar-te na tua Obra, porque as crianças vadias que recolhes pisam o que semeio, sujam tudo e sinto-me esgotada”, Dom Bosco não respondeu. Mas elevou o olhar para o crucifixo… A mãe entendeu – e ficou.

O Evangelho leva-nos depois pelo meio da multidão, que grita aquilo que lhe dizem para gritar. Estaremos nós ali a gritar por “Barrabás”, o criminoso, liberalizando os crimes contra a Lei de Deus? “Não concordo com essa parte do Evangelho”, dizia alguém numa sessão de catequese de adultos, diante duma frase polémica de Jesus. Será que andamos atrás de um Evangelho “a la carte”, aceitando umas afirmações, recusando outras, consoante nos incomodam ou não? “Crucifica-O!” Grita o povo que antes aclamou, e gritamos nós.

Alguns, como Maria, Madalena e Salomé, ficam até ao fim. Ficam, cuidando dos pais idosos ou dos filhos com deficiência; ficam, acolhendo o cônjuge doente ou perdoando o cônjuge traidor. De pé junto à cruz. Serão as primeiras testemunhas da ressurreição.

Seremos como elas? Ou seremos como os salteadores crucificados com Jesus, que das suas cruzes O injuriam? Saberemos que quando a vida nos crucifica, no meio está Jesus? E que ser crucificado com Ele é uma honra?

Por fim, um gesto corajoso: o de José que, cheio de tristeza, enfrenta a autoridade, vai pedir a Pilatos o Corpo de Jesus, O envolve num lençol e O sepulta. Como aquele outro José, também ele homem de coragem, que trinta e três anos antes, cheio de alegria, tinha envolvido o mesmo Corpo do Senhor num lençol e O depositara numa manjedoura… Somos cristãos corajosos, sem respeitos humanos, na alegria ou na tristeza?

Percorremos o Evangelho, procurando um lugar de onde adorar Jesus. Adoremo-l’O então, agora que o sacerdote eleva o Pão e o Vinho, Corpo e Sangue entregues por nós. Porque seja qual for a revelação que tenhamos tido sobre nós próprios, a revelação mais importante é a sua. Jesus está ali, em silêncio diante de todas as acusações, manso e humilde. O Filho do Pai morreu em vez de Barrabás, ou “Bar-Abba”, “filho do Pai” em hebraico. O Filho do Pai morreu para que nos tornemos, sem merecer, filhos do Pai como Ele.

“Tu és o Rei dos Judeus?” Quis saber Pilatos. Agora sim, despojado de tudo, das vestes e da vida, Jesus pode afirmar que é Rei. Por coroa, tem espinhos; por joias, três cravos; por trono, uma cruz. O véu que nos separava de Deus foi rasgado de alto a baixo. Choremos, como Pedro, diante do seu infinito amor, e proclamemos como o centurião: “Este homem era Filho de Deus.” Ámen.

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