Em Caná da Galileia...


Domingo I da Quaresma, Ano C

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

AINDA NÃO CHEGÁMOS A CASA!

A quaresma começou. É tempo de converter o coração ao Senhor, o Deus único que por nós Se entregou até à morte.

As leituras lembram-nos que estes quarenta dias de quaresma são uma passagem pelo deserto; que a vida inteira é uma passagem pelo deserto. Ainda não chegámos a Casa! Somos, como professavam os judeus no dia das Primícias, “arameus errantes”, nómadas que o Senhor libertou do “Egito” – a terra do mal – pelo Batismo, e a quem prometeu “uma terra onde corre leite e mel”, a Páscoa definitiva que fica para além do deserto – e desta vida. A quaresma é o tempo perfeito para nos darmos conta deste “nomadismo”, ajudando-nos a recentrar a atenção nas coisas do Céu, através de uma oração mais intensa.

No deserto, Jesus jejuou. Também nós precisamos de jejuar, pois não podemos focar-nos no Céu enquanto tivermos a vida cheia das coisas, sons, sabores e prazeres deste mundo. Façamos jejum de tudo o que é supérfluo, não só de alimento. Porque não um jejum de redes sociais, séries televisivas, conversas fúteis?

Por fim, no deserto, Jesus foi tentado por Satanás. Não sabemos exatamente como aconteceu esta tentação, que partes da narração são catequese, que partes são relato histórico. O que sabemos, com toda a certeza, é que a tentação foi real, decidida a destruir a missão salvadora de Jesus. Sabemos, com toda a certeza, que Satanás jogou todos os seus trunfos para que Jesus fugisse da Cruz. E Jesus venceu. Por isso, com Ele também nós podemos vencer. Porque também para nós, a tentação é real e visa levar-nos o mais longe possível da Cruz.

“Se és Filho de Deus, manda a esta pedra que se transforme em pão”, desafia Satanás. Jesus lutou contra esta tentação a vida inteira: Ele tinha, de facto, poder para resolver todos os problemas das pessoas. Podia transformar a água em vinho, curar os doentes, multiplicar o pão, fazer o mar da Galileia transbordar de peixe. Infelizmente, para muitos a Boa Nova era apenas isto, e por isso Jesus proibia o povo de divulgar os seus milagres.

Ainda hoje, muitos procuram nas seitas cristãs a resolução de problemas pessoais, financeiros, familiares. Querem um Jesus milagreiro, um Jesus que transforme em pão as pedras do seu caminho, um Jesus sem Cruz.

Jesus responde a Satanás com a Escritura: “Nem só de pão vive o homem”. Precisamos de levantar os olhos e ver mais longe, para além da matéria, porque somos seres espirituais. Que importa ficarmos curados de um cancro, se não chegarmos ao Céu? Que valor tem uma despensa cheia, se hoje mesmo o Senhor nos chamar a prestar contas?

“Se te prostrares diante de mim, tudo será teu”, continua Satanás. É uma tentação real e poderosa, que atravessa todas as camadas da sociedade: quem quer ocupar um lugar de chefia, fazer carreira na política, ter sucesso neste mundo, sabe que o caminho mais fácil passa por hipotecar valores e desafiar as leis de Deus, seja colocando-se do lado do “politicamente correto” defendendo temas como o aborto, seja espalhando calúnias ou enganando o próximo. Todos assim fazem, justificamos. Fazem-no os “grandes” e os “pequenos”, os ricos e os pobres, adorando Satanás sem o saberem. 

“Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto”, diz Jesus em resposta. S. Paulo insiste: “Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo.” O povo judeu oferecia ao Senhor as primícias, professando a fé no Deus único. Estarão a nossa boca, coração e opções de vida em sintonia, proclamando o primado de Deus sem compromissos?

Por fim, Satanás levou Jesus ao pináculo do Templo: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo.” Depois, citou as Escrituras: “Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, para que Te guardem.” Podemos ser tentados até através das Escrituras? Sim, podemos. Se as quisermos usar para servir os nossos interesses, encontraremos passagens suficientes para nos justificarmos. É por isso que os católicos confiam na Igreja para a interpretação das Escrituras, através do Catecismo, da Palavra do Papa, da Tradição, dos Padres e dos Doutores da Igreja. 

Aqui, a tentação é desafiar a Providência, acreditando que basta ter fé para tudo nos correr bem. No mundo atual, é comum misturar a fé com uma crença vaga em “energias positivas” e doutrinas de autoajuda. Mas não há salvação sem Cruz. O salmo que Satanás cita e hoje rezamos fala-nos da Providência que nos acompanha em qualquer cume e qualquer abismo. “Estarei com ele na tribulação”, promete o Senhor. “Nenhum mal te acontecerá”, porque o único mal absoluto é a ausência de Deus.

Coroa de espinhos

Hora da missa. “Meu pai era um arameu errante”… Somos tão insignificantes! E no entanto, “o Senhor ouviu a nossa voz, viu a nossa miséria, fez-nos sair do Egito e conduziu-nos a este lugar”. Aqui experimentamos já a doçura de “uma terra onde corre leite e mel” e o cuidado de um Deus que nos leva “na palma das mãos”… Cheios do Espírito Santo, como Jesus, estamos prontos para atravessar o deserto.

One Comment

  1. Pilar Pereira

    Tão poderosas estas palavras! E sempre tão necessárias… Por que será que constantemente, e sem me dar conta, procuro uma vida sem Cruz?

    Agradeço a Deus a inspiração com que escreves estas reflexões.

Responder a Pilar Pereira Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *