Em Caná da Galileia...


Domingo XXVI do Tempo Comum, ano B

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

PISTAS PARA A NOSSA DESCLERICALIZAÇÃO

Moisés recebeu de Deus a difícil missão de conduzir o povo até à Terra Prometida. Às vezes, apetecia desistir. Moisés falava então com Deus e não media as palavras, como neste trecho do Livro dos Números: “Acaso fui eu que concebi todo este povo? Fui eu que o dei à luz, para me dizeres: Leva-o ao colo, como a ama leva a criança de peito, até à terra que prometeste a seus pais? Onde arranjarei carne para dar a todo este povo que chora junto de mim? Eu sozinho não consigo suportar todo este povo!” (Nm 11, 12-14) A leitura deste domingo é a resposta a esta oração de súplica de Moisés: o Senhor pede a Moisés que traga à Tenda da Reunião setenta anciãos, para que partilhem com ele a dura tarefa de liderança, e derrama sobre eles o seu Espírito, como derramara sobre Moisés. A imagem que o escritor sagrado usa é lindíssima: “O Senhor (…) tirou uma parte do Espírito que estava em Moisés e fê-lo poisar sobre setenta anciãos do povo.” Não é um gesto de divisão, mas um gesto de multiplicação, semelhante ao que acontece quando, com uma única vela, acendemos milhares de outras: o fogo que se reparte não diminui de tamanho, antes se mantém todo inteiro em cada vela que o queira receber, até ao infinito.

Quando os anciãos reunidos com Moisés começaram a profetizar, começaram também dois outros, no acampamento. Ao saber disso, Josué, o “braço direito” de Moisés, fica perturbado e pede a Moisés que os mande calar, pois estavam “fora”. Mas o humilde e magnânimo Moisés não cai na tentação do poder e do ciúme: “Quem dera que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre todo o povo!” Uma profecia que Moisés estava longe de entender, mas que nós, cristãos, sabemos ter-se tornado realidade.

Semelhante à de Josué é a atitude de João no Evangelho: “Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco.” E como Moisés, também Jesus Se mostra humilde e magnânimo: “Não o proibais, porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós.”

Reconhecemo-nos na atitude de Josué e João? Às vezes, o nosso pecado é tão subtil, que nem nos apercebemos dele, e por isso precisamos de rezar como o salmista: “Quem pode reconhecer os seus erros? Purificai-me dos que me são ocultos.” Olhemo-nos de frente: como é difícil abrir mão dos nossos dons e do nosso poder para os partilhar! Até nos assuntos mais triviais, dentro da família, quando a mãe precisa de aceitar que o pai tenha uma forma diferente de cuidar do bebé, ou mais tarde, quando a família precisa de confiar na escola, para juntos partilharem a tarefa sagrada da educação, ou ainda depois, quando a mãe precisa de se calar diante da nora, a quem chegou a vez de educar. Nada disto é fácil! Mas quanto mais humildes e magnânimos formos, mais seremos capazes de delegar. Diante de Deus, é muito mais valiosa a humildade de quem partilha o poder do que a soberba de quem se acha acima dos outros e capaz de tudo fazer sozinho.

Os ciúmes de Josué e João manifestam-se ainda mais na paróquia. Como é difícil para alguém que chega de fora integrar-se na vida paroquial! Os paroquianos com alguma autoridade são muitas vezes ciosos do seu poder, e sentem a presença dos outros não como uma riqueza, mas como uma ameaça. Outras vezes, é o próprio pároco que experimenta uma enorme dificuldade em delegar nos leigos tarefas importantes, acabando por ficar sem tempo para o essencial da sua vocação sacerdotal. Bem prega o Papa sobre a necessidade de desclericalização das paróquias!

Na sua carta, S. Tiago vai falar de um outro tipo de mesquinhez: a acumulação da riqueza material. Não nos enganemos a nós próprios: se temos demais, é porque outros têm de menos, e cabe-nos a nós, cristãos, partilhar com eles tudo o que recebemos, tal como Deus partilha o seu Espírito com todos os batizados.

Esta luta pelo poder, esta mesquinhez, esta ganância de que as duas leituras nos falam são grandes fontes de escândalo na comunidade cristã. Jesus é muito duro, quando nos diz que teria sido melhor para os escandalosos não terem nascido. A Igreja atual está em crise, precisamente porque escandalizou os pequeninos. Não adicionemos motivos de escândalo aos que já temos!

Como combater estes vícios? Com determinação, coragem e a decisão de “cortar o mal pela raiz”, sempre. Mesmo que tenhamos de beijar o chão, dobremo-nos, humilhemo-nos, aceitemos a ajuda dos irmãos, partilhemos. Pois mais vale entrar na Eternidade assim dobrados, “mutilados”, feridos no nosso orgulho, do que ficar fora.

Hora da missa. Jesus, o Mestre e Senhor, vai diante dos nossos olhos despojar-Se de todo o seu poder e riqueza, humilhar-Se até à morte, e repartir o seu Corpo e o seu Espírito até ao infinito. Cada um de nós irá recebê-l’O todo inteiro. Jesus só Se sabe entregar todo inteiro, pois amar é dar tudo, e dar até ao fim… Iremos nós fazer o mesmo?…

2 Comments

  1. Catarina Silva

    Sempre lindas estas reflexões! Tanto para tirar daqui!

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