Notre Dame está a arder! Assim abriam os noticiários na segunda-feira da Semana Santa de 2019. Um dos mais eloquentes símbolos da civilização cristã estava em chamas, e para quem está atento aos sinais dos tempos, a mensagem era clara: a Igreja está a arder.
Um ano depois, aqui em Portugal, entrámos na Quaresma ao mesmo tempo que éramos impedidos de participar na missa dominical e de comungar. Enquanto o mundo elogiava a prudência da Igreja e o seu papel no controlo da pandemia (fizemos bem em desconfiar!), nós agonizávamos com Cristo, perguntando-nos o que quereria Ele dizer à sua Igreja ao privá-la assim da sua companhia. As palavras de São Paulo aos Coríntios tornaram-se assustadoramente importantes: “Que cada um se examine a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, como e bebe a própria condenação.” (1Cor 11, 28-29). Quantos cristãos conhecem estas palavras, que surgem imediatamente a seguir ao relato da instituição da Eucaristia? Talvez muito poucos.
Nessa Quaresma de 2020, estaria o Senhor, na sua misericórdia, a impedir-nos de cometer, se não os pecados mortais habituais, pelo menos o sacrilégio de comungar a nossa condenação? Uma vez que a proibição de ir à missa veio, não do governo, mas dos nossos bispos, é de crer que manifeste a vontade de Deus.
13 de fevereiro de 2023, aniversário da morte da Irmã Lúcia, a quem Nossa Senhora tinha dito: “Não ofendam mais a Nosso Senhor, que já está muito ofendido”; a quem Nossa Senhora mostrara as chamas do Inferno, e a quem também revelara as chamas do seu Coração cercado de espinhos, como o Coração de Jesus, pois Maria é a imagem mais perfeita da Igreja, Esposa de Cristo e com Ele totalmente identificada.
13 de fevereiro de 2023, data em que, em Portugal, o relatório sobre os abusos sexuais dentro da Igreja é revelado. Também nós ficamos diante do Inferno, também a nós é dado contemplar os Corações de Jesus e Maria, cercados de espinhos. Depois da Quaresma de 2020, em que fomos chamados a refletir sobre os nossos pecados perante o dom da Eucaristia, somos agora confrontados com os pecados de alguns sacerdotes, que não só comungam, como consagram a Eucaristia. Não admira que Deus, agoniado, tenha retirado o seu dom por uns tempos. As chamas de Notre Dame chegaram a Portugal.
A Igreja está a arder. O mundo, atento, deita quantas achas pode para que a fogueira cresça o mais possível. E os cristãos distraem-se a encher baldes de água para baixar as chamas. Poucos levantam os olhos para o Crucificado, a maior vítima de sempre do nosso pecado.
O Crucificado? Mas não está Jesus ressuscitado, na glória do Pai? É aqui que entra o grande e belo mistério da Igreja. As imagens e as palavras são de Paulo: a Igreja é o Corpo, Jesus é a Cabeça. Um sem o outro não podem viver. Aquela afirmação moderna “eu gosto de Cristo, mas não suporto a Igreja” é, portanto, um absurdo. Diz o Catecismo da Igreja Católica no parágrafo 795: “Cristo e a Igreja são, pois, o Cristo total (Christus totus). A Igreja é una com Cristo.” E se a Cabeça já nasceu para a eternidade, pela ressurreição, o Corpo ainda se encontra a caminho, sofrendo e gemendo as dores de parto. Assim, e enquanto houver sobre a Terra um ser humano a redimir, a Igreja completa na sua carne o que falta à paixão de Cristo. E é essa a sua alegria.
A Igreja e Jesus são, portanto, carne da mesma carne, como Adão exclamou no início da Criação ao ver a bela Eva. Aliás, o matrimónio só é um sacramento, continua Paulo, porque espelha a união esponsal sonhada por Deus desde o início entre Jesus e a Igreja. Ele é o novo Adão, adormecido sobre a Cruz, de coração rasgado para dele formar a nova Eva. Ao encarnar, Jesus tomou para Si a nossa carne; ao comungar, a Igreja toma para si a Carne de Jesus. A união não podia ser mais completa. Como podia então a Igreja chegar à Quaresma de cada ano e de cada época histórica sem se deixar, também ela, cravar na Cruz do seu Amado?
Quaresma 2023. Até aqui, tudo bem. A Igreja sofre com Cristo. O que nos dói cá por dentro é outra coisa. Em causa está aquela afirmação do Credo: “Creio na santa Igreja.” O que fazer ao nojo que experimentamos agora? A Igreja é santa enquanto Corpo de Cristo. Se a Cabeça é santa, o Corpo participa desta santidade. Experimentamo-la nos sacramentos da Igreja, e respiramos o seu odor na vida dos incontáveis santos, canonizados ou não. Toda a civilização moderna colhe os frutos desta santidade, pois a Igreja tem sido verdadeiramente fonte de misericórdia e sabedoria no mundo, pioneira nos direitos humanos, nas universidades, nos hospitais, quantas vezes a única a não arredar pé em ambientes de guerra e fome.
Mas este Corpo que é a Igreja é formado por membros pecadores. Como Israel na Antiga Aliança, também a Igreja tem sido infiel ao seu divino Esposo, traindo-o com falsos deuses e descuidando o amor. Quantas vezes, ao longo da História da Igreja, como da História de Israel, se cumpriu a profecia: “Enfeitava-se com o seu anel e o seu colar e corria atrás dos seus amantes, mas de Mim ela se esquecia!” (Os 2, 15) Nas Cartas às Igrejas do Apocalipse, Jesus faz acusações muito graves: “Devo reprovar-te por teres abandonado o teu primeiro amor.” “Sei onde moras: é onde está o trono de Satanás.” “Conheço a tua conduta: tens fama de estar vivo, mas estás morto.” “Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar da minha boca.” E apesar de tudo, Jesus não desiste da sua Igreja. Apesar de tudo, Jesus não retira o seu Nome dos nossos certificados de Batismo quando O escandalizamos, nem se envergonha de nós. Antes insiste outra e outra vez: “Eis que estou à porta e bato…”
Ao profeta Oseias, Deus revelou o seu divino estratagema para trazer a sua Esposa de volta a casa: “Por isso, eis que vou, Eu mesmo, seduzi-la, conduzi-la ao deserto e falar-lhe ao coração.” (Os 2, 16)
Foi assim quando exilou o seu povo na Babilónia, no tempo do profeta Daniel. Três jovens crentes foram então lançados à fogueira, que o rei mandara aquecer sete vezes mais do que o costume. Em vez de tentar fugir das chamas, eles rezaram: “Senhor, encontramo-nos hoje humilhados em toda a terra por causa dos nossos pecados. Não há mais, nem chefe, nem profeta, nem príncipe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem lugar onde oferecermos as primícias diante de ti para encontrarmos misericórdia!” Deus escutou a sua oração e o fogo não lhes causou a mais leve queimadura.
No deserto aonde nos conduziu, nesta Quaresma de 2023, a fogueira já foi acesa, sete vezes mais do que o costume. Os nossos baldes de água não têm qualquer poder perante tal calamidade. De que estamos à espera para nos humilharmos e fazermos penitência diante do Único que nos pode livrar das chamas? (continua amanhã)
Pois, não vale a pena esconder a realidade, mas aceitar esta cruz, levantarmo-nos e pisar as pegadas do Senhor. Obrigado, Teresa
Teresa, muito obrigada por seres este ponto de luz nas trevas. Obrigada por nos ajudares a manter o foco e a cabeça clara.
E é isto… Como dizes…
“este corpo que é a Igreja é formado por membros pecadores” desde o início da história de Deus connosco. Várias vezes quase deitámos tudo a perder e chegámos ao fundo do poço. E este é mais um episódio negro da história da Igreja. Penso que passada a onda de polémica activa e o sensacionalismo, os culpados serão acusados e julgados como acontece nestes casos. E à Igreja, a esta nossa Igreja (eu, tu e todos os leigos, padres e religiosos) que está sujeita ao pecado, a virar costas a Deus e a cavar a sua desgraça caberá converter-se cobrar ânimo e levantar a cabeça!
Bem podemos, sim, oferecer o nosso deserto de quaresma e da própria vida, pelos padres e pela Igreja.
Obrigada Teresa, por iluminar o caminho para eu me orientar nesta escuridão que se instalou em mim. Confesso que me sinto totalmente desorientada, perdida… já não vejo noticias nenhumas. Sinto uma dor dilacerante, uma traição horrível.
Estou ansiosa para ler a continuação do texto.
Obrigada
Paula Almeida
Obrigada, Teresinha!
Um beijo e saudades
(Estão a viver na Idanha?)
Grata por estas palavras.
Rezemos e façamos penitência pela santificação da Igreja.