Três horas e meia, em frente ao portão da escola do primeiro ciclo aqui na nossa aldeia. As aulas já terminaram. A Lúcia vem a correr abraçar-me, mas o António, como sempre, tem mais duas ou três pedras para apanhar do chão enlameado. Quando, finalmente, chega junto de mim, pego na sua mochila e não contenho uma exclamação: “Ena, que peso! Mas o que trazes tu aqui dentro?”
A Marília, simpática auxiliar que vigia o recreio, sorri-me e antecipa a resposta: “Ouro…” Ela já conhece o António e sabe os tesouros que ele transporta casa-escola escola-casa diariamente. Espero até chegar a casa, onde finalmente entorno no jardim (já me deixei de abrir a mochila do António dentro de casa) pedras, paus, bolotas, castanhas, aparas de lápis, um tubo de cola aberto, agulhas de pinheiro e um saquinho de seixos brancos, redondinhos, que me remetem imediatamente para o recreio da escola primária da minha infância… “Não despejes isso, por favor! São diamantes, ora vê…”
Horas mais tarde, enquanto preparo o jantar, o António vem ter comigo à cozinha. Tem uma coisa para me dizer.
“Mãe, hoje no recreio dois meninos não deixaram o Afonso brincar. Disseram que eles é que mandavam e o Afonso tinha de ir embora. O Afonso começou a chorar, e mesmo assim eles não o deixaram brincar. Então eu disse que também não me apetecia brincar e fui brincar com o Afonso. Ele ficou muito contente. Brincámos os dois juntos e apanhámos muitos tesouros. Mãe, diz-me, como é que os meninos conseguem ser tão maus? Viram o Afonso a chorar e mesmo assim não o deixaram brincar? Se calhar os pais não os ensinam, não achas?”
Abracei o meu filho e disse-lhe o quão orgulhosa estava dele. Sabia que também ele experimentara na pele a rejeição que hoje coubera ao Afonso, quando fora gozado por ter o cabelo cortado, no dia anterior; ou quando fora gozado por ainda não fazer uma letra inteligível no quadro (ele que, no segundo ano, lê mais depressa que qualquer menino do quarto ano da sua sala). E sabia o quanto, então, ele oferecera a Jesus: “Se eu oferecer não dói tanto, não é, mãe?”
Porquê tanta maldade nas crianças? Não é uma pergunta retórica, juro-vos. É a minha sincera surpresa perante a repetição de cenas assim, na escola dos meus filhos como na minha. Porquê? Nestes dias, temos sido confrontados com os requintes mais macabros a que pode chegar a maldade dos adultos. Mas poderão as crianças ser também à sua escala maldosas? Custa imaginar! O Papa Francisco fez uma homilia inteira dedicada a este tema, que vale a pena ler. Podem fazê-lo aqui.
Eu deixo-vos com umas palavras do Livro de Samuel. No domingo passado, de facto, lemos como o Senhor chamou Samuel e partilhei convosco o vídeo da nossa família a contar a história. É uma história simpática, fácil de contar às crianças. Prudentemente, a leitura dominical, bem como a leitura na missa diária meditada mais ou menos pela mesma altura, terminam sem que saibamos o que foi mesmo que o Senhor disse a Samuel. Mas a Bíblia revela-nos esse segredo. Vou partilhá-lo convosco, correndo o risco de vos chocar. Dêem-lhe o desconto necessário, a partir do conhecimento da misericórdia divina que só o Novo Testamento nos trouxe. Deus, diz o Niall cá em casa muitas vezes, é um “coração de manteiga”. Mas não deixem de prestar atenção…
Olha, Samuel! Vou fazer uma coisa a Israel, que toda a pessoa que a ouvir ficará com os ouvidos atordoados. Naquele dia vou realizar tudo o que eu disse contra a casa de Eli. Vou anunciar-lhe que condeno a sua família para sempre, por causa da sua maldade. Pois sabia que os seus filhos seguiam caminhos ímpios e não os impediu. (1Sm 3, 11-13)
Pois custa!! Deve haver poucas coisas mais tristes que não ver no olhar de uma criança a transparência da ingenuidade, a alegria, a bondade. Ver atos de maldade em crianças é desconcertante sim. Mas talvez o António tenha razão, os pais por vezes não educam os seus filhos para dar mas apenas para receber. Receber elogios de serem os mais fortes, os mais malandros, os que não se deixam ficar para trás.
Num colégio onde o meu filho andou no 1o ciclo certo dia encontrei duas mães indignadas à porta. Percebi que não estavam bem e perguntei o que se tinha acontecido.
Disseram que tinham sido chamadas à direção do colégio. Os seus 3 filhos (2 gémeos) e que eram primos foram repreendidos, e a sua família chamada, pela sua conduta, com uma colega de turma.
A menina tinha alterações de comportamento que possivelmente estaria no espectro do autismo e quando ia à casa de banho eles ficavam na porta para a esperar e gozar chamando de deficiente e correndo atrás dela até ela gritar de pânico.
A escola era pequena, o ambiente acolhedor, os funcionários excelentes e a situação não durou muito até ser apanhada.
Mas a indignação e preocupação daquelas mães não foi no sentido que esperava e nunca me tinha acontecido ficar paralisada sem qualquer resposta como naquela situação. O remate final da conversa foi este: ” Então a miúda é deficiente e os nossos filhos é que são repreendidos por dizer a verdade?!?”
Nem sei o que dizer. Rezemos por estas crianças para que experimentem o amor de Deus, e por seus pais para que mudem sua atitude. A Deus nada é impossível. 😟