Em Caná da Galileia...


A rotina, tesouro escondido

Sentado ao computador, aproveitando a meia hora diária de Internet a que tem direito em férias quando chove, o António, de nove anos, viaja pelo Google Earth. “Olha, mãe, a nossa casa! Que gira! Vem cá ver. O carro do papá está à porta!” Da sua secretária, onde estuda para os exames da universidade, o Francisco dá uma gargalhada: “Já reparaste, mãe? Há poucos dias escutei um fotógrafo na net a referir isto mesmo… O Google Earth permite-nos viajar pelo mundo inteiro. Podemos, com esta ferramenta, visitar lugares incríveis, explorar paraísos terrestres no outro lado do mundo. E qual é a primeira coisa que uma pessoa faz quando clica no Google Earth? Procurar a sua própria casa! António, para veres a tua casa basta ires ali fora, e até a podes ver em 3D. Não precisas do computador!”

A minha casa pode ser o lugar mais banal do mundo. A minha família pode ser a mais imperfeita sobre a Terra. Quantas vezes, ao chegar do trabalho, entro em casa e, depois de uma olhada rápida pela banca da cozinha e pelo chão da sala, sinto vontade de voltar a sair! Quantas vezes sonho com uma rotina diferente, em que não precisasse de trabalhar tanto fora de casa! Quantas vezes, ao ter de separar dois irmãos à luta, ou de ajudar um filho com um problema de matemática, ou de estender roupa no jardim pela terceira vez no mesmo dia, eu anseio por umas férias no outro lado do planeta!

Mas a verdade é que, tal como o António a navegar no Google Earth, também eu sei perfeitamente que o único sítio onde quero mesmo estar é aqui e é agora. Apesar de adorar ir de férias, apenas com marido e fihos, uma vez por ano, ou fazer um fim-de-semana diferente de vez em quando, não trocaria a minha rotina por nada, absolutamente nada deste mundo.

Quando o estendal fica divertido…

Jesus pregou durante três anos; mas durante trinta anos, viveu na rotina da sua vida de família e do seu trabalho de carpinteiro. Ora se esta rotina, em casa e no trabalho, não tivesse um tesouro escondido, porque havia Ele de fazer tal coisa? Jesus saboreou cada momento da sua rotina familiar. Contemplou a Mãe a colocar fermento na massa e sal na comida, a varrer a casa e a elevar a luz sobre o candelabro. Contemplou o pai a trabalhar a madeira, a negociar na aldeia, a ganhar o pão com o suor do seu rosto, como mandam as Escrituras. Cada gesto de Maria e de José continha uma lição sobre o Reino de Deus, transformando-se assim em Mistério divino.

Lembro-me de uma passagem da História de uma Alma, de Santa Teresinha, também ela “prisioneira da rotina”, num dos lugares com as rotinas mais rígidas da Terra: o Carmelo.

Todas as tardes, quando via a Irmã S. Pedro sacudir a ampulheta, sabia o que isso queria dizer: “Vamos!” É incrível como me custava sair. Apesar disso, fazia-o imediatamente, e depois, começava todo o cerimonial. Era preciso retirar e levar o banco de um modo especial, sobretudo, não se apressar; a seguir, iniciava-se o passeio. Tratava-se de acompanhar a pobre doente, segurando-a pela cintura. Fazia-o com a maior suavidade que me era possível, mas se por infelicidade, ela dava um passo em falso, logo lhe parecia que eu a segurava mal, e que ia cair. (…) Por fim, chegávamos ao refeitório, e ali surgiam outras dificuldades… (..)

Uma noite de inverno, cumpria, como de costume, o meu pequeno ofício. Estava frio, era noite… De repente, ouvi ao longe o som harmonioso de um instrumento musical. Então imaginei um salão bem iluminado, todo resplandecente de dourados, de donzelas elegantemente vestidas, dirigindo-se mutuamente cumprimentos e cortesias mundanas. A seguir, o meu olhar pousou na pobre doente que amparava. Em vez de uma melodia, ouvia os seus gemidos queixosos; em vez de dourados, via os tijolos do nosso claustro austero, mal iluminado por uma luz muito frouxa. Não consigo exprimir o que se passou na minha alma; o que sei é que o Senhor a iluminou com os reflexos da verdade, que ultrapassavam de tal maneira o brilho tenebroso das festas da terra, que não podia acreditar na minha felicidade…

Que o Senhor ilumine também a nossa alma com reflexos da verdade, para descobrirmos o tesouro de felicidade que se esconde por detrás da rotina mais banal ou mais difícil, quando a mergulhamos em amor!

2 Comments

  1. Bom dia Teresa!

    não podia estar mais de acordo! Talvez porque as rotinas têm sido poucas ou inconstantes nesta minha vida tão peculiar, sinto-lhes a falta . É na constância que encontramos a tranquilidade suficiente para falar, com os nossos ou com Deus.
    Muito do desconcerto do mundo actual, tão próspero e tecnologicamente evoluído, reside na falta de rotinas interiorizadas.

    Bom dia!

  2. Catarina Ramos Tomás

    O primeiro dia depois das férias é um pesadelo…
    Ou então não! Se o vivermos embebido deste espírito.
    O dia de hoje teria sido um verdadeiro pesadelo noutra altura. Voltar à rotina hoje foi difícil, mas foi acima de tudo muito rezado.
    Obrigada, sei hoje que Deus me abraçou através deste texto.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *