Em Caná da Galileia...


Abriu-lhes as Escrituras

O tempo pascal propõe-nos a leitura diária dos Atos dos Apóstolos. Certamente já repararam como é que os Apóstolos apresentam Jesus ao povo: Jesus é Aquele que vem cumprir as Escrituras. É assim também que o próprio Jesus Se apresenta na estrada de Emaús:

Começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que Lhe dizia respeito. (Lc 24, 27)

Iluminados pelo Espírito no Pentecostes, os primeiros discípulos descobriram em Jesus a encarnação, real, de todas as Palavras divinas. Puderam, assim, concluir sobre a História da Salvação, o que Mark Twain concluiu sobre a História em geral: “A História pode não se repetir, mas a verdade é que ela rima!” (no original: “History doesn’t repeat itself, but it does rhyme!”)

Quando foi que nos afastámos das Escrituras? Quando foi que Jesus deixou de ser, para nós, o cumprimento fiel da Bíblia? Quando foi que intelectualizámos Deus, despindo-O da sua essência bíblica? A resposta é histórica. Mas no fundo, pouco importa agora. Importante, sim, é recuperar este olhar bíblico e reaproximarmo-nos do Deus da Bíblia, porque o Deus da Bíblia é o Deus de Jesus.

Mas… Não é o Deus bíblico é um Deus emotivo, que tanto Se alegra connosco, como nos castiga, um Deus ciumento, apaixonado, impulsivo, um Deus que…? Não é tudo isso linguagem simbólica, ultrapassada, infantil? Não são os autores bíblicos, no dizer de muitos autores católicos de hoje, simples “catequistas” – e cheios de imaginação?

Ler e meditar nas Escrituras faz, realmente, o coração arder dentro do peito (Lc 24, 32) e emocionar-se (At 2, 37). Eu nunca senti o coração a arder com um Deus abstrato, que não intervém na História dos Homens, que não Se deixa comover. Os Evangelhos guardaram um leque muito variado das emoções de Jesus, que Se compadecia, que chorava, que Se irava, que perdoava, que acarinhava, que Se zangava, que Se enternecia, que abençoava – e que amaldiçoou, que se saiba, pelo menos uma figueira.

Deus castiga? Claro que castiga! A Bíblia está cheia de exemplos! Deus perdoa? Claro que perdoa: aliás, Deus morre, literalmente, de desejo de nos perdoar! Deus sente-Se ofendido com o nosso pecado? Obviamente. “Não ofendam mais a Nosso Senhor, que já está muito ofendido”, disse Nossa Senhora em Fátima, fazendo eco de todos os profetas. Deus está triste porque poucos O visitam no sacrário? Sim, está. E por isso, S. Francisco Marto passava horas seguidas diante de “Jesus Escondido”, para O consolar. Consolar a Deus?! Palavras infantis, num mundo crescido… Sim, palavras infantis. Porque se não nos fizermos crianças, não herdaremos o Reino.

Jesus tratava Deus por “Abba”, que significa “Papá”. Que criança gostaria de ter um pai amorfo, incapaz de demonstrar sentimentos? E que pai bom e dedicado abandona os filhos pequenos a si próprios, deixando-os fazer as escolhas erradas sem nunca os castigar? Será a liberdade sinónimo de abandono? Os únicos pais que não castigam são os que não amam nem se preocupam com os seus filhos. Aliás, nós castigamos os nossos filhos, que amamos e que nos compete educar, não os filhos dos outros. Deus é Pai, Papá, Pai nosso, não como um conceito abstrato, mas de facto. E tanto nos ama, quando fica à espera que regressemos da pocilga dos porcos, imitando o pai do filho pródigo, como quando Se lança à nossa procura, imitando o pastor da ovelha perdida.

Até quando, Senhor? Grita a Bíblia tantas vezes. Até quando Te esquecerás de nós? Até quando nos deixarás fazer as nossas escolhas erradas sem intervires? Até quando permitirás que Te ofendamos sem Te irares? Até quando reprimirás o Teu desejo de nos atraíres a Ti, de nos chamares de novo à santidade, castigando os nossos crimes para que acordemos e nos convertamos? Scott Hahn, grande biblista, chamava outro dia a atenção para este detalhe: na Carta aos Romanos, 1, 18-32, S. Paulo diz que a ira de Deus se exprime, não por calamidades, mas precisamente pela falta de intervenção divina, pelo abandonar do homem ao seu próprio pecado (e S. Paulo fala em pecados sexuais bem concretos). Ou estará S. Paulo também ultrapassado?

Pelo contrário, continuava Scott Hahn, o momento em que Deus decide, em cada geração, intervir, repreendendo, castigando, corrigindo a rota, é já um tempo privilegiado de misericórdia, em que podemos respirar de alívio: Ele está atento! Ele não irá permitir que ultrapassemos limites que já raiam o absurdo! Ele não nos abandonou à nossa idiotice! Graças, Senhor!

Não estaremos a “antropomorfizar” Deus, relacionando-nos com Ele através da linguagem bíblica? Mas se Deus escolheu a linguagem bíblica para Se nos revelar, porque havia de querer que usássemos outra na nossa relação com Ele? Todas as revelações privadas de Jesus que eu conheço (como por exemplo a da Divina Misericórdia) usam linguagem bíblica, exprimindo uma vasta gama de “sentimentos divinos”. Se o nosso pensamento atual se afastou do pensamento bíblico, a solução não passa por descartar o pensamento bíblico, mas por corrigir o atual.

Quem se deixa interpelar pelas Escrituras, descobre, como Cornélia Connelly dizia, que o único mal é o pecado, e o único bem é Deus, pelo que tudo o resto a que chamamos de bem ou de mal é relativo. Deixemos de chamar nomes feios ao vírus que, em si, não é bom nem mau, como eu vi outro dia fazer um daqueles tele-evangelizadores sectários americanos (“Em nome de Jesus, conjuro-te que te vás embora, covid-19!” Gritava ele, eufórico). Aproveitemos antes a pandemia para nos convertermos, ou teremos perdido este tempo favorável de graça.

Enquanto o nosso Deus for uma abstração, nem nós precisaremos d’Ele, nem Ele de nós. Mas quando nos decidirmos, como os Apóstolos, a abrir as Escrituras e a deixar que Ele nos fale com as mesmas Palavras com que falou a Israel, o nosso coração aquecerá. E num instante, estará a arder…

 

 

 

 

 

3 Comments

  1. Ecoa em mi, “só Tu tens palavras de vida eterna”… sim, Deus espera pacientemente que escolhamos os Seus caminhos… penso que uma linguagem que perdure século após século, destinada a tantas culturas diferentes só poderá ser como a bíblica.
    Difícil, muito, se lida de acordo com interpretações racionais e alicerçadas em códigos elaborados, mas simples e clara se não nos socorrermos dessas grelhas de interpretação.
    Que Nos deixemos guiar e Nossa Senhora nos inspire, tão clara que foi, “Fazei tudo o que Ele Vos disser”… e nós nem sempre fazemos…

    Boa semana,
    beijinhos

  2. Tão bom começar o dia a refletir…
    “Aproveitemos antes a pandemia para nos convertermos ou teremos perdido este tempo favorável de graça.”
    Também digo isto constantemente a quem me rodeia, quando só se ouve lamentações, mas infelizmente nem todos sabem aproveitar…

  3. antónio assunção

    a Israel e a nós com o “Convertei-vos”… mesmo em tempo de Páscoa… e a Maria “toda revestida da Palavra”… faça-se em Mim segundo a Tua Palavra
    Bom mês com Maria

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