Em Caná da Galileia...


As novíssimas revelações privadas

Como alguém que adora rir, tenho-me divertido imenso com a multiplicação de memes engraçados partilhados por Whatsapp (não tenho Facebook), nestes tempos de confinamento. Ter sentido de humor é uma grande qualidade no ser humano, e eu vivo numa família que, graças a Deus, usa e abusa do sentido de humor. Algumas refeições cá em casa são de chorar a rir, tal a quantidade de brincadeiras com as palavras que conseguimos fazer!

No entanto, há um fenómeno que me tem incomodado: a constatação de que estes memes divertidos e leves são usados por muitos cristãos (leigos, consagrados, sacerdotes, bispos…) como uma fonte de meditação, ou seja, como um auxiliar de oração e de tomada de decisões. Deixo-vos alguns exemplos de memes trocados em mensagens sérias sobre o tema, neste caso, em páginas públicas:

https://www.facebook.com/LeiriaFatima/posts/2920263098054403/ (meme usado numa resposta de D. António Marto a um sacerdote da diocese, que questionava a suspensão das missas comunitárias)

https://www.facebook.com/ecapvl (página de catequese)

E mais alguns, em páginas da minha confiança e que eu percorri à procura de ajuda espiritual, no início do confinamento:

Usar um meme deste tipo para brincar, é uma coisa; para falar a sério e transmitir “doutrina” (entre aspas, pois a Doutrina sem aspas não é esta), é outra totalmente diferente. E é aqui que reside o problema. Eis apenas alguns exemplos destes erros, a partir dos memes acima:

Corre por aí a afirmação de que, quem é pró-vida, não pode ser contra a suspensão das missas comunitárias; que quem às vezes se esquece da máscara ao sair de casa, ou dá dois beijinhos ao cumprimentar um amigo (e eu pertenço a este grupo distraído e pouco responsável) está a ser tão pecador como quem defende o aborto, a eutanásia, o o genocídio (é comum defender o genocídio, já estão a ver). Se, por causa da minha atitude menos higiénica, alguém contrair o terrível vírus, eu torno-me – e isto tem sido dito com toda a seriedade – em assassina, incorrendo, concluo eu, em pecado mortal. Ora nada disto está contido na verdadeira doutrina católica. Só uma ação ou uma omissão premeditada da minha parte, no intuito de espalhar o vírus, poderia ser considerado pecado. E a covid-19 ainda não mudou a doutrina, apesar dos seus esforços.

Corre igualmente a afirmação de que as igrejas de pedra são apenas locais de culto, porque as verdadeiras igrejas são as que existem em casa de cada um de nós. Embora isto tenha algo de verdadeiro, não podemos esquecer que as igrejas de pedra têm um sacrário, e que no sacrário habita Jesus, o Deus Altíssimo, em Corpo, Sangue, Alma e Divindade. E que para salvar Jesus Sacramentado, vários mártires deram a vida. No incêndio de Notre Dame, um sacerdote arriscou a vida para salvar Jesus Sacramentado. Não morreu, mas se morresse, seria mártir da Eucaristia. As Irmãs Servas, a ordem religiosa de Clare Crockett, fazem um quarto voto, o voto de estarem prontas a dar a vida por Jesus Eucarístico. E no dia da morte de Clare, uma irmã tinha realmente arriscado a vida para salvar a Eucaristia do terramoto. Estaremos a chegar ao cúmulo de achar tais mortes um desperdício e uma insensatez? Se continuarmos a oferecer estes memes para meditação dos fiéis, certamente que sim.

A liturgia quaresmal, a partir da antiquíssima Tradição da Igreja, vê no Dilúvio uma pré-figuração do sacramento do Batismo. Os memes da pandemia tiveram a ousadia de recuperar esta passagem bíblica para verem no Dilúvio um exemplo da sensatez humana, que procura salvar a vida terrena das catástrofes naturais. E nós aceitamos com naturalidade esta comparação e acenamos a cabeça em concordância: estamos todos tão sensatos, graças a Deus! Que importa a Tradição da Igreja e as comparações com o Batismo – sacramento que, aliás, a pandemia tem poder para adiar?

Os Evangelhos dizem-nos que Deus provê, oferecendo-nos em primeiro lugar o perdão e a paz; os novíssimos memes dizem-nos que Deus provê, oferecendo-nos em primeiro lugar máscaras, álcool gel e isolamento social.

Deixo-vos apenas alguns dos variadíssimos exemplos do que por aí anda. Talvez assim tomemos consciência do novo fenómeno religioso que estamos a viver: a absolutização da saúde, uma posição intolerante, indiscutível e moralizante, que tem como consequência a banalização e relativização de temas infinitamente mais importantes, como a luta pró-vida, a salvação eterna e o poder da Eucaristia.

É interessante, isto, já repararam? As aparições marianas levam décadas até serem aceites pela Igreja; as revelações de Jesus, como por exemplo as da Divina Misericórdia, chegam a ser proibidas antes de, finalmente, algum Papa as trazer à luz e lhes dar o nihil obstat. Algumas revelações da nossa era continuam sob forte suspeita, apesar dos imensos estudos teológicos que as suportam, como as aparições do Garabandal ou as revelações de A Verdadeira Vida em Deus.

Mas um simples e divertido meme, “citando” palavras de Deus Pai ou de Jesus, é partilhado indiscriminadamente por leigos, padres e bispos, e oferecido e aceite como Palavra de Deus ou, pelo menos, como palavra divinamente inspirada, em apenas alguns segundos…

Que o vírus da covid-19 não nos mate a lucidez espiritual!

One Comment

  1. Mais uma brilhante e pertinente observação da Teresa.
    Divertir, quando se tem plena consciência do verdadeiro conteúdo doutrinal até é salutar… o problema reside precisamente quando ao serem partilhados por páginas oficiais e ‘de confiança’ sem o necessário enquadramento e explicação, por vezes apenas contribuem para a desinformação e completa confusão naqueles que não têm tanto conhecimento da fé que professam.
    Felizmente que ainda vamos tendo a Teresa para nos trazer a luz sobre estes temas e não deixar confundir o trigo com o joio.
    Bem-haja

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