Em Caná da Galileia...


As palavras mágicas e o jardim do Paraíso

“Podes, por favor, controlar as crianças? Estou numa vídeo conferência internacional, sou eu neste momento o palestrante, não posso desligar o microfone e já nem consigo concentrar-me no que estou a dizer. Obrigado!”

O e-mail chegava-me do outro lado da casa. Era do Niall que, fechado no nosso quarto como sempre desde o início do confinamento, procurava trabalhar. Eu também estava diante do computador – a tempo de ler a mensagem de desespero e de sorrir com o “por favor” e o “obrigado”, pois o Niall nunca se esquece das boas maneiras – mas tinha os auscultadores nos ouvidos. Já tinha dado as minhas aulas via “zoom” e estava agora a deliciar-me com um testemunho de um casal americano sobre família e fé. Estava – virtualmente – a milhares de milhas de distância do barulho que, aparentemente, atormentava o Niall.

Sobressaltada, retirei os auscultadores e fechei o computador. O Niall tinha razão: pouco faltava para os mais novos se matarem, tal a gritaria que chegava do corredor, mesmo diante da porta cerrada do nosso quarto. Num instante, cheguei junto do António e da Sara, puxei cada um por um braço e empurrei-os para o jardim, a fim de terminarem a discussão o mais longe possível – num contexto de confinamento – da restante família. Depois suspirei, regressei ao computador e respondi ao meu caríssimo marido, enviando-lhe um e-mail para a outra ponta da casa: “Serviço concluído. Os pequenos terroristas estão lá fora. Podes trabalhar descansado. Desculpa a minha distração.”

Isto foi a semana passada, mas ontem lembrei-me novamente do e-mail que recebi do Niall, desesperado no meio daquela conferência, sem contudo esquecer o “por favor” ou o “obrigado”. Lembrei-me porque a Clarinha me veio contar o comentário de um colega, com quem ela trabalhava em “zoom”, e que a ouvira pedir aos manos – os barulhentos do costume – que saíssem dali, “por favor”, “obrigada”. “Tu falas sempre assim aos teus irmãos?” Perguntara o colega, surpreendido. Entre irmãos, ao que parece, não é normal ser-se educado. E entre esposos?

Os momentos de rebelia, zanga, irritação e cansaço, cá em casa, são mais do que os desejáveis. Mas mesmo no meio dos gritos e dos amuos naturais em todas as relações, mesmo com o caos instalado e muitas lágrimas e punhos cerrados, procuramos que nunca faltem as palavras-mágicas: por favor, obrigada, desculpa, dá licença. Sobretudo entre nós, marido e mulher, já que as crianças estão naturalmente em aprendizagem e levarão umas mais tempo que as outras. No entanto, eu falho muito mais do que o Niall, para quem a delicadeza não é negociável – ainda que a casa esteja a cair com o barulho das crianças e os seus colegas do Uzbequistão e do Iraque estejam a sorrir discretamente por detrás do ecrã da reunião “zoom”.

Tenho vindo a aperceber-me de como é pertinente o conselho do Papa, ao pedir repetidamente às famílias para nunca se esquecerem das “palavras-mágicas”. Nelas estão, de facto, contidas as sementes da paz familiar.

Uma Família de Caná é, acima de tudo, uma família capaz de reconhecer o enorme privilégio que é existir enquanto família. “Obrigada, meu Deus, porque me criaste!” Assim rezou Santa Clara antes de morrer, assim rezámos, o Niall e eu, no dia do nosso matrimónio. Uma Família de Caná é uma família agradecida pelo dom do Criador, que faz de cada esposo um presente para o outro, de cada filho, um presente para os seus pais, de cada irmão, um presente para os outros irmãos.

Vêm aí as férias grandes, os longos dias de praia, os piqueniques, o descanso merecido. Enquanto nos deliciamos com as maravilhas da Criação, neste ano aniversário da Laudato Si, tenhamos, cada vez mais, os olhos cheios da beleza que descobrimos uns nos outros; os ouvidos cheios das palavras amáveis que também sabemos dizer uns aos outros – juntamente com os gritos infantis – e o coração transbordante de gratidão uns pelos outros.

Foi, na verdade, num jardim, que o primeiro Homem e a primeira Mulher se deixaram tomar de espanto pelo dom um do outro, recebido ali diretamente das mãos do Criador:

Esta sim, esta é na verdade osso dos meus ossos e carne da minha carne! (Gn 2, 23)

É por isso que, todas as noites, as Famílias de Caná regressam a este “jardim”, na sua hora de oração familiar. Cantando, dançando, rezando com palavras simples, partilhando gargalhadas e silêncios, passando as contas do terço por entre os dedos e discutindo sobre as Escrituras, enquanto os mais novos adormecem com a cabeça no nosso colo, deixamo-nos, agradecidos, tomar pelo espanto.

O espanto de sermos – família – imagem e semelhança do próprio Amor.

4 Comments

  1. Pilar Pereira

    Ai, palavras mágicas, palavras mágicas… muitas vezes faltam cá em casa! “Cobrar” comportamentos é tão fácil… Obrigada por mais este testemunho. Beijinhos para todos.

  2. Grata por nos apresentar, de forma graciosa e bem humorada, a importância da delicadeza na relação humana.
    Passos simples, acessiveis a todos, que nos facilitam a vida e aquecem o coração.
    Bem haja!

  3. Querida Teresa…. Eu, pecadora, me confesso… Desde o começo desta pandemia e do lockdown em Março, nunca mais cá vim ao site.
    Não vou dar desculpas de não ter tido tempo, por causa de home schooling, home kindergardening, home office etc.
    Um ditado alemão diz que “onde há vontade, há um caminho”.
    Pelos vistos a minha vontade não foi suficiente para achar o caminho até aqui.
    Hoje o chamamento foi tão forte que tive mesmo de vir.
    E dei de caras com este post.
    Como sempre, puseste o dedo na ferida…
    Como disse a Pilar: tantas vezes faltam as palavras mágicas cá em casa. Também nós em família somos muito rápidos a cobrar comportamentos.
    Obrigada pela partilha e pelo “puxar de orelhas”.
    Que Deus vos acompanhe neste advento.

    • Bem vinda de novo, Teresa! Tanta coisa mudou e continua a mudar por aqui, e em breve, também o site será diferente, para melhor, claro! Vamos mantendo o contacto! Um grande abraço, sempre!
      Teresa

Responder a Aurora Tomaz Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *