Em Caná da Galileia...


Bagagem pronta

Ontem tropecei numa mochila do Homem Aranha, estrategicamente colocada à entrada do meu quarto. Apanhei-a e inspecionei o seu interior: uma corda de saltar, um cubo mágico, um baralho de cartas incompleto, carrinhos, alguns objetos não indentificáveis e um bloco de apontamentos.

“Essa mochila é minha, não podes mexer!” O António, que acaba de fazer sete anos, vinha a correr do seu quarto e quase esbarrava comigo.

“Por que não vais arrumar estes brinquedos todos nos seus sítios? Esta mochila está uma grande confusão!” Sugeri.

“Arrumar? Mas acabei de a arrumar! É a mochila que vou levar para a Irlanda. Já está pronta!”

Olhei para ele boquiaberta. Irlanda? De facto, cá em casa não se fala noutra coisa, desde que marcámos as férias deste verão e comprámos as passagens para a Irlanda. Há três anos que lá não vamos, e estamos todos felizes com a possibilidade de, finalmente, visitarmos a família. A viagem será na segunda quinzena de agosto, ou seja, daqui a… precisamente seis meses. Mas o António já tem a sua bagagem pronta!

À noite mostrei a mochila ao Niall e rimo-nos os dois com gosto. Homem previdente vale por dois, claro! E a ida à Irlanda justifica toda a pressa do mundo.

Depois dei comigo a pensar na bagagem que cada um de nós é chamado a preparar nesta vida. A passagem para a outra Vida, a verdadeira, a feliz, a eterna, talvez seja apenas daqui a muitos anos, e por isso, para a maioria de nós deverá ser bem mais longínqua que a passagem para a Irlanda. Valerá a pena preparar a bagagem com tanta antecedência?

S. João Bosco costumava fazer, uma vez por mês, com os seus jovens, um dia de retiro, a que chamava “retiro da boa morte”. O nome parece assustador, mas o conceito é simples: uma vez por mês, ele queria que os seus rapazes refletissem sobre a sua “bagagem”. Estariam preparados para a viagem, se ela surgisse, por exemplo, nessa mesma noite? Nesse retiro, era-lhes pedido que organizassem as suas coisas – a secretária escolar, os livros e cadernos, as roupas – de forma a não deixarem papéis inúteis para outros arrumarem; organizassem a sua vida interior, através de uma boa confissão; organizassem as suas amizades e relações sociais, pedindo perdão, reatando amizades, criando laços. Três belas áreas de intervenção, quando pensamos na bagagem que queremos levar connosco…

Talvez eu possa fazer o mesmo. Como D. Bosco e os seus rapazes. Como o António. Uma vez por mês – ou uma vez por período, ou antes de cada interrupção letiva, ou depois de cada período de férias, ou depois de cada crise – posso organizar a minha casa, deitando lixo fora, dando o que não uso, reciclando o que não necessito, fazendo uma limpeza mais profunda; posso organizar a minha vida interior, confessando-me com especial preparação e pormenor; posso organizar as minhas amizades, as minhas relações sociais, a minha vida familiar, cumprindo na íntegra as promessas que fiz ao Senhor de fidelidade e amor em qualquer circunstância, de aceitação e educação dos filhos na fé da Igreja.

Por que não?

Pensamos muito pouco nisso, mas a verdade é que há um céu e há um inferno, e ambos começam aqui e agora…

Vigiai pois, porque não sabeis quando chegará o senhor da casa; se à tarde, se à noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que vindo de improviso, não vos encontre a dormir. (Mc 13, 35-36)

 

7 Comments

  1. Pilar Pereira

    Esta parte “tocou-me” especialmente: “era-lhes pedido que organizassem as suas coisas – a secretária escolar, os livros e cadernos, as roupas – de forma a não deixarem papéis inúteis para outros arrumarem”. As outras duas áreas de intervenção são importantíssimas, sem dúvida, mas a primeira mexeu comigo porque não me lembro de alguma vez ter pensado no trabalho de arrumação que deixaria para outros, se repentinamente deixasse esta vida terrena. Os papéis e as inúmeras tralhas, tralhinhas e tralhonas que fui acumulando ao longo do tempo são imensos! É certo que de tempos a tempos deito muita coisa fora, mas nunca chego a ir a todos os sítios onde tenho coisas guardadas…

    • Pois é, Pilar, eu penso muito nisso desde que me vi a braços com a tarefa hercúlea de arrumar toda a desarrumação da minha tia solteira, quando ela partiu para o Pai… Foi tarefa de um ano inteiro, que ainda não está concluída… A partir daí, organizei melhor as minhas coisas pessoais e deitei muita coisa fora!

      • Olívia Batista

        Vou entrar também na discussão… ultimamente tenho procurado afastar-me do excesso de “coisas guardadas”, finalmente estou a reconhecer que não consigo viver rodeada de tralha com a desculpa que são recordações etc…
        Hoje este texto deixou-me realmente mais motivada a deitar mãos ao trabalho!
        Obrigada!

  2. Desconhecia por completo a existência desses retiros de D. Bosco. Nunca tal me passou pela cabeça, o simples facto de não voltar à casa terrena o trabalho que daria aos outros. Curioso, no trabalho tenho essa questão acautelada. Ora aqui está uma sugestão de penitência para a Quaresma. Vou pensar nisso

  3. O meu avô nunca saia de casa sem a deixar arrumada.
    E sempre com umas ceroulas limpas vestidas.

  4. Conceição Simões

    É verdade. A minha mãe deixava tudo arrumado quando tinha que sair . Dizia que não sabia como voltava e não queria dar trabalho aos outros.

  5. Pilar Pereira

    Eu faço distinção entre ter a minha casa arrumada e ter tudo, tudo arrumado, mesmo nas gavetas mais recônditas… Tenho muitas vezes a casa arrumada, ao olhar de quem entra, mas no caso de eu não voltar a pisar o chão da minha casa, por partir para o Pai, haveria muita coisa para dar trabalho a quem ficasse, pois teriam que ir a todos os “cantos”…

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