Em Caná da Galileia...


Do Livro de Job ao coronavirus

Quando escrevi o Ensinamento Mensal, estávamos longe de imaginar o cenário atual de pandemia, aqui no nosso cantinho do mundo. Mas Deus, que sabe tudo, já o conhecia. Por isso nos deu, como leitura privilegiada para estes dias, o Livro de Job. Já o meditámos, à luz do que agora vivemos?

Permitam-me que reescreva a história de Job, só um bocadinho… pode ser? (Deixarei o original do Livro de Job em itálico)

“Um dia em que os filhos de Deus se apresentavam diante do Senhor, o acusador, Satan, foi também junto com eles. O Senhor disse-lhe: «Don­de vens tu?» Satan respondeu: «Ve­nho de dar uma volta ao mundo.» O Senhor disse-lhe: «Reparaste no meu servo Job? Não há ninguém como ele na terra: ho­mem íntegro, reto, que teme a Deus e se afasta do mal.» Satan respon­deu ao Senhor: «Porventura Job te­me a Deus desinteressadamente? Não ro­deaste Tu com uma cerca prote­tora a sua pessoa, a sua casa e todos os seus bens? Não o colocaste Tu no primeiro mundo, onde tudo está garantido – a saúde, o trabalho, o lazer, a liberdade de movimentos?» Então, o Senhor disse a Sa­tan: «Pois bem, tudo o que ele possui deixo-o em teu poder.» E Satan saiu da presença do Senhor.

Então Satan enviou um vírus misterioso, que em pouco tempo cobriu a terra. De um dia para o outro, Job viu-se fechado em casa, forçado a trabalhar ao computador no meio do rebuliço dos seus muitos filhos, que continuamente lhe pediam o acesso ao computador para receberem as informações dos seus atarefados professores; necessitando tomar todos os cuidados para se proteger e aos seus filhos da misteriosa doença; assolado de todos os lados de informações que procuravam disseminar o pânico, o medo e o desespero, armas principais de Satan.

Teletrabalho…

Teleuniversidade…

Telescola…

Telecreche…

Teleginástica artística…

Telebasquetebol…

Então, Job levantou-se, rasgou as vestes e ra­pou a cabeça. Depois, prostrado por terra em adoração, disse: «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor!»

Mais telecreche...

Mais telecreche, agora na cozinha!

E aconte­ceu que um dia em que os filhos de Deus se foram apresentar diante do Senhor, Satan apareceu também junto com eles na presença do Se­nhor. O Senhor perguntou-lhe: «Donde vens tu?» Satan respondeu: «Venho de dar a volta ao mundo e percorrê-lo todo.» O Senhor disse-lhe: «Reparaste no meu servo Job? Não há ninguém como ele na terra: homem íntegro, reto, que teme a Deus e se afasta do mal; ele persevera na sua integridade, apesar de me teres incitado contra ele, para o aniquilar sem motivo.» Satan res­pondeu: «Não o alimentas Tu todos os domingos com a Eucaristia? Não Te recebe ele todos os domingos no seu próprio corpo? Não Te fazes Tu todos os domingos carne da sua carne? Experimenta fechar as igrejas e retirar-lhe o alimento, e verás como ele Te amaldiçoará, mesmo na Tua frente.» O Senhor disse a Satan: «Pois bem, aí tens Job ao alcance da tua mão; mas poupa-lhe a vida.»

Nesse mesmo dia, Job descobriu que o misterioso vírus o impedia de frequentar a missa dominical, porque o risco de contágio era grande. Ficou privado da Eucaristia, que apenas podia acompanhar por Internet, mas que já não o podia alimentar, porque o ecrã do computador ainda não nos deixa “tomar e comer” o pão concreto, material, que realiza o sacramento entre nós.

Telemissa…

A sua mu­lher disse-lhe: «Per­sis­tes ainda na tua integridade? Amal­­diçoa a Deus e morre de uma vez!» Respondeu-lhe Job: «Falas como uma insen­sata. Se recebemos os bens da mão de Deus, não acei­tare­mos também os males?»

O Livro de Job abre, em seguida, um belíssimo poema, onde os homens e Deus dialogam. E se os homens estão cheios de opiniões, Deus só tem perguntas: Confias? Acreditas? Amas? Não sabes que Eu sou Todo-Poderoso?

Também por cá, o Livro de Job se desenrola num montão de opiniões diferentes, sobre a origem do vírus, sobre os seus efeitos, sobre a necessidade de se fecharem igrejas, sobre a nossa culpa nisto tudo. E também por cá, Deus nos continua a inquietar: o que podes tu fazer, para continuar a confiar? Como podes tu amar? Como podes tu continuar a celebrar a tua fé? Não sabes que Eu sou Omnipresente?

Um pouco por todo o mundo, os Jobs de hoje vão demonstrando que a fé em Deus é mais poderosa que todo o mal: muitos dão-se totalmente, servindo e esquecendo-se, como profissionais de saúde; outros desdobram-se em atenções para com os que estão isolados; os professores têm a cabeça num nó a tentar descobrir como se ensina à distância, usando as plataformas que lhes vão sugerindo; as famílias redescobrem a alegria de estarem juntas, mesmo no caos do trabalho que não abranda, porque ainda ninguém está de férias; as Igrejas Domésticas fortificam-se e descobrem-se, inventando rituais e aprendendo a fé; sacerdotes do mundo inteiro abrem a sua criatividade ao Espírito, e aprendem a confessar ao ar livre, a celebrar a Eucaristia em praças desertas ou nos terraços dos prédios, para que os fiéis possam presencialmente participar, ou transportam o Senhor Eucarístico em procissão pelas ruas desertas. Os que ficaram, por obediência, impedidos de celebrar comunitariamente, fazem transmissões pela internet, e aumentam o seu tempo pessoal de adoração eucarística.

Mais teleuniversidade…

Mais telescola…

Eis a minha oportunidade para escrever este texto!

Esta é a minha atualização da história de Job, neste momento. Ainda não acabou. Talvez Satan continue a dialogar com Deus e a retirar-nos, um a um, os nossos bens, talvez toque os nossos pais ou os nossos filhos. Não sei.

Mas por cá, por todo o mundo, continuaremos a proclamar que Deus é o Senhor do tempo e da História, e embora não seja Ele a espalhar a doença, a fechar as igrejas e a lançar o caos na economia, a verdade é que tudo o que nos acontece, só acontece com Sua permissão. Como Job, digamos: se Ele assim o quer, porque não quereríamos nós também?

Quando tudo isto terminar – porque tudo passa, só Deus não muda – teremos crescido na gratidão pelo dom da saúde, pelo mais pequeno gesto de afeto, pela companhia uns dos outros, pelo dom da Eucaristia partilhada, dada e recebida, pelo muito que sempre tivemos e continuamos a ter.

Quando tudo isto terminar, teremos trazido ao de cima o melhor de nós mesmos, a nossa generosidade e a nossa valentia.

Quando tudo isto terminar, as nossas Igrejas Domésticas serão fortes e saudáveis, com práticas bem estabelecidas de oração familiar.

Quando tudo isto terminar, seremos melhores, mais fraternos e mais crentes.

Jogando às escondidas na pausa do almoço…

Ou não?

Vamos! A bola está do nosso lado. Imitemos Job! Fintemos Satanás com o poder do Crucificado!

Ámen.

 

 

 

 

 

 

7 Comments

  1. Pilar Pereira

    Gostei bastante da tua reescrita da história de Job. Inspirada e muito certeira…
    À pergunta que deixas no final: “Ou não?” não sei responder. Ou melhor, tenho ideia de uma resposta, mas não sei se será a que eu penso… Têm sido dias complicados para mim, estou a ter dificuldade em gerir os trabalhos dos miúdos com o meu trabalho e com a pequena em “telecreche”. Não temos rezado mais do que rezávamos, o que é, muito possivelmente, um desperdício de oportunidade… Enfim…

    • Por aqui também estamos em adaptação um bocado caótica, Pilar! A minha teleescola pessoal está a ser complicada, muitos trabalhos em vídeo de apresentações orais para avaliar, e o Daniel ao colo… Mas acho que, infelizmente, ainda teremos tempo para nos adaptarmos… Bj e força aí!

  2. Catarina Ramos Tomás

    Quis Deus que eu continuasse a trabalhar, pois os sem abrigo não têm casa para a quarentena. Precisam do banho e da refeição todos os dias…
    Nunca pensei que fosse tão duro querer o que Deus quer. Deixar em casa um marido em teletrabalho e três filhos em tele não sei bem o quê. Saio com o coração apertado, dividido entre a certeza de que não estou sozinha e a vontade imensa de ficar junto dos meus. Vou dizendo baixinho “querer o que Deus quer”…

    • É assim mesmo, Catarina! Escrevi o desafio quaresmal, agora não sei como vou conseguir cumpri-lo também. Mas vai ter de ser, e ser com alegria! Um abração, virtual claro!

  3. De tudo isto o que mais me custou foi chegar no domingo passado à igreja e dar com a porta fechada.
    A casa do Pai, fechada quando os filhos mais precisam de consolo?
    Fez-me muita confusao…

    Agora que vim aqui ler os posts, cheguei à conclusao que, se calhar, em tempo de Quaresma, há que fazer uma renúncia maior do que a que costumo fazer (nao beber bedidas alcoólicas).

    Nao me tinha dado conta até hoje do importante que a igreja realmente é para a minha vida pessoal.
    A Teresa já refletiu neste tema muitas vezes. Só sabemos dar Valor ao que temos quando deixamos de o ter…
    Em 25 anos de Alemanha só uma vez nao fui passar a Páscoa a “casa” (Portugal), e nesse ano veio a família inteira à Alemanha (era a primeira comunhao do meu sobrinho). Este ano estou “proibida” de ir, e doi-me a alma. Nao só por nao poder ir ver a minha mae, que pertence ao grupo de alto risco, mas também por nao estar na aldeia a dar a minha pequena ajuda nas cerimónias da Semana Santa, onde faco falta porque cada vez há menos pessoas “jovens” capazes de ir cantar os salmos, por exemplo.

    «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor!»

    Vou pelo menos juntar-me aos meus irmaos da irmandade de Sao Matias, que sugeriram rezarmos “juntos” ao meio dia. Assim estamos juntos em oracao, nao podendo estar juntos fisicamente.

  4. Natércia Coelho

    Que forte esta atualização da Palavra de Deus, Teresa! Muito obrigada! Por aqui também se está em quarentena, sem Missa, sem atividades pastorais, os trabalhos a meio gás. Impressionante o poder deste virus! A Suíça já ultrapassou os 3000 infetados e mais de 20 mortos, mas como Job, queremos permanecer fiéis e dizer ´Deus mo deu, Deus mo tirou. Bendito seja Deus!’
    E vemos já tanto de positivo! Esta união na oração, a oportunidade de oferecer sacrifícios a Deus, a privação da Eucaristia que faz crescer o desejo de receber Jesus, e tantas outras coisas que são como que presentes de Deus. Que forma fantástica de viver a Quaresma, que se transformou numa Quarentesma.😅
    Que possamos sair dela com o coração mais sintonizado ao de Jesus e não percamos nenhuma das graças que o Senhor nos quer dar neste tempo extraordinário.
    Estamos de facto com Jesus no deserto, a viver inúmeras tentações e provações, mas quem sabe não poderemos viver a Páscoa participando na Eucaristia? Esperemos contra toda a esperança! Nós, Jesus! Nós, Maria! Nós, José! ✝️

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