Quatro e meia da tarde. Saltando da sua bicicleta, o David entra na cozinha cheio de fome, como todos os dias. A escola acabou e o regresso de bicicleta abriu-lhe o apetite.
“Mãe, foi tão engraçado hoje na aula de Moral”, diz-me, entre dois goles de leite. “Estávamos a falar sobre a Bíblia, e um dos meus amigos estava a explicar a outro como era formada a Bíblia.” No colégio salesiano aqui de Mogofores, os alunos estão sempre sentados em pequenos grupos, para se poderem ajudar uns aos outros enquanto resolvem as diferentes tarefas. O David continua: “Eu só escutava. A dada altura, este meu amigo interrompeu a sua própria explicação, um pouco baralhado, voltou-se para mim e perguntou: David, Dom Bosco pertence ao Novo Testamento?” O David ri a bom rir a contar a história.
“Ele tinha alguma razão, David”, atalho, entre risos. “Talvez todos possamos pertencer ao Novo Testamento, não achas? Quando vivemos vidas dignas dele… E Dom Bosco viveu, com toda a certeza!”
É estranho, mas real, as crianças católicas desconhecerem o livro central da sua religião.
A fé surge pela pregação, e a pregação surge pela Palavra de Cristo. (Rm 10, 17)
Assim fala S. Paulo. Mas já muito antes disso, o Deuteronómio proclamava aquilo a que eu chamo “o mandamento da educação”:
Trarás no teu coração todas as palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás muitas vezes a teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em casa ou andando pelos caminhos, quando te deitares ou te levantares. Hás de prendê-las à tua mão para servirem de sinal, e hás de escrevê-las no portão da tua casa. (Deut 6, 6-9)
Como aquele pequeno diálogo na sala do David mostra, os pais cristãos não repetem a Palavra de Deus a seus filhos tantas vezes assim. E a principal razão é que eles próprios não a conhecem. Há uns anos, quando comecei a escrever Os Mistérios da Fé, lendo e relendo as histórias do Antigo Israel, o senhor padre José Fernandes dizia-me, para me encorajar: “Força, Teresa, está a fazer um ótimo trabalho! Eu sou do tempo em que, no seminário, estávamos proibidos de ler várias partes do Antigo Testamento, como por exemplo, o Cântico dos Cânticos. Escusado será dizer que era logo por onde começávamos…”
Os tempos evoluíram, mas ainda há muitos catequistas que preferem não contar as histórias do Antigo Testamento aos meninos, por serem “demasiado difíceis”. Ainda há pouco, alguém me dizia que não ia fazer a Árvore de Jessé, a partir do meu livrinho, porque o Antigo Testamento não é próprio para crianças… Claro que esta atitude pressupõe que quem a defende não faz a menor ideia do que é o Antigo Testamento. Pois que criança ou que adolescente não se sente entusiasmado com a história, bem contada, de David e Golias, de Gedeão, da travessia do Mar Vermelho?
“Mas eu não sei por onde começar!” Dizia-me uma amiga e colega de trabalho. E acrescentou: “Às vezes abro a Bíblia ao acaso, procuro ler um parágrafo, e descubro que não entendo nada…” Sugeri-lhe aquilo que fazemos aqui em casa: seguir simplesmente as leituras que o missal propõe para a missa de cada dia, pois a Palavra de cada dia é suficiente para nos matar a fome de Deus, e o facto de ser sequencial facilita o nosso entendimento.
Quem segue, connosco, as leituras da missa diária, deu-se conta que acabámos o ciclo de David, para continuarmos agora com Salomão e todos os outros reis. Quantas lições aprenderam com David, aí em casa? Tanto em que refletir, não é verdade? A confiança absoluta de David em Deus, o seu coração humilde, a sua valentia, a sua fé nas promessas de Deus, a sua oração alegre e dançante, a sua conversão, a sua atenção à Palavra de Deus, que lhe chega quase sempre através de algum profeta…
Por cá, detivemo-nos a meditar nas circunstâncias que o levaram ao pecado. Repararam? O seu exército tinha partido para a guerra, mas David repousava preguiçosamente em seu palácio. Em vez de conduzir as suas tropas, estava a observar as mulheres dos outros. Que grandes lições sobre o valor santificante do trabalho e sobre os perigos da preguiça! Detivemo-nos ainda na necessidade de educarmos os filhos nas virtudes cristãs (de novo, parece que David andava mais ocupado com outros assuntos…), e no papel desolador que a poligamia desempenha neste campo, gerando ciúmes e invejas entre filhos de mães diferentes, que acabam por se matar uns aos outros.
Mas também nos detivemos a meditar nas grandes vitórias de David. Por exemplo, na alegria esfuziante com que dançou diante da Arca de Deus. Seremos, também nós, capazes de louvar o Senhor na Eucaristia com tanto entusiasmo?
E pensámos ainda na fé que lhe permitiu vencer Golias com cinco pedrinhas e uma funda. Nestes nossos dias, o Golias que nos quer atacar esconde-se no Parlamento, prestes a aprovar mais uma lei da morte, desta vez a eutanásia, como fez com o aborto. Mas também se esconde em cada esquina da nossa sociedade, onde a ideologia do género se tornou tão banalmente aceite, que as pessoas nos olham com horror quando afirmamos que só existem dois sexos, o feminino e o masculino, e que estes são determinados no momento da conceção… De que estamos à espera para pegar na nossa funda e atingir Golias na fronte? A história de David – um pastorinho sem formação na arte da guerra – ensina-nos que todos, e não apenas os especialistas na matéria, temos o poder e o dever de o fazer.
O Evangelho destes dias tem acompanhado o início da pregação de Jesus. Marcos, que estamos a seguir na missa diária, dá uma atenção especial ao interior de Jesus, à sua bondade, à sua compaixão. Como nos faz bem, contemplar um Coração tão manso e humilde como o do nosso Salvador! À beira-mar, Jesus vai fazendo milagres e transformando vidas. Talvez a nossa possa também ser tocada…
As Escrituras diárias foram escritas para se cumprirem hoje, na nossa vida e na vida da nossa família, como procurei dizer no Ensinamento Mensal (se ainda não leram, vamos a isso!)
Lendo e relendo as Escrituras todos os dias, aproveitemos para fazer magníficas reflexões familiares sobre o mundo, a história e a nossa vida. Pouco a pouco, deixemos que o “dedo de Deus” (Ex 31, 18) escreva as nossas vidas na História Sagrada, como escreveu as vidas dos seus eleitos, os “servos do Senhor”. E como Dom Bosco, também nós teremos a honra de pertencer ao Novo Testamento 🙂
(Aproveito este post para pedir a vossa atenção às datas dos retiros e encontros agendados, em Eventos. Houve algumas alterações, e mais alterações se seguirão, pelo que é preciso ir espreitando!)
E aí em casa, como tem sido a leitura da Palavra de Deus? Aproveitem a caixa de comentários para partilhar as descobertas, reflexões e pistas de vida, que a Palavra vos traz! Vamos ajudar-nos uns aos outros a descobrir o grande tesouro da nossa fé!
Em estudos superiores de Pentateuco, quando um aluno fazia uma questão, entre risos o docente respondia: “alguma vez ouviu um lobo a falar?” “Não!” “Pois então….mesmo assim conta a história do capuchinho vermelho às crianças, não conta?!” 😶
Talvez não seja preciso recuar ao tempo de seminário do Padre Zé Fernandes…hoje (ainda) é assim! “Não podemos viver em João Batista! E pior é que há gente que ainda vive em David!” – ouvi tantas vezes.
Ainda bem que a Teresa fala deste assunto tão importante e bonito das passagens bíblicas, da nossa vida escrita ali, diante dos nossos olhos e acessível a todos!
Obrigada!
Aqui em casa a leitura da liturgia diária é intermitente e por isso perco muitas vezes o fio à meada, por isso decidi começar com o 1º livro de Samuel e ler do início ao fim, inclusivé as notas de rodapé. Fico sempre envergonhada com o meu fraco conhecimento do Antigo Testamento, mas para isso tenho bom remédio!
E o “dedo de Deus” mais uma vez mexeu os cordelinhos porque não íamos conseguir ir ao retiro programado para o próximo domingo… e agora vejo que foi alterado!!!