Em Caná da Galileia...


Domingo I da Quaresma, ano A

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicadas no jornal diocesano Correio do Vouga

CUIDADO COM A SERPENTE!

Quaresma. Temos quarenta dias para preparar a maior festa do ano! Vivamo-los intensamente, cultivando com carinho o jardim que Deus plantou na nossa casa e no nosso ser.

“O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, insuflou nas suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo.” Somos pó e sopro, somos terra e céu, somos humanos e divinos. Somos mistério, que a teologia, a biologia e a psicologia vão procurando desvendar, mas que só no Céu será plenamente conhecido.

Terá havido, de facto, um primeiro pecado, histórico e concreto? A nossa fé assim o diz. Deus quis correr o risco de nos criar livres, porque de outro modo, não poderíamos amar, visto o amor, por definição, não se impor. E o primeiro casal humano escolheu um caminho contrário ao do amor. Diz o Catecismo, nº 403: “Depois de S. Paulo, a Igreja sempre ensinou que a imensa miséria que oprime os homens, e a sua inclinação para o mal e para a morte não se compreendem sem a ligação com o pecado de Adão e o facto de ele nos transmitir um pecado de que todos nascemos infetados e que é a ‘morte da alma’. A partir desta certeza de fé, a Igreja confessa o Batismo para a remissão dos pecados, mesmo às crianças que não cometeram qualquer pecado pessoal”. Na verdade, no trecho da Carta aos Romanos que hoje meditamos, S. Paulo afirma: “Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim também a morte atingiu todos os homens, porque todos pecaram.”

Mas uma das maravilhas das Escrituras é que, sejam elas históricas ou alegóricas, podem sempre ecoar dentro de nós, no “hoje” que vivemos e somos. Qualquer Palavra das Escrituras é sempre para mim e para ti. O Jardim do Éden existe no mais profundo de cada ser humano. Às vezes, fica lá tão fundo, que as pessoas não se dão conta da sua existência, e vivem como se não houvesse Jardim. Outras vezes, vislumbramo-lo facilmente, ainda que de relance, contemplando as suas cores vibrantes, inspirando os seus perfumes, saboreando os seus frutos. Não é de Paraíso que falam os apaixonados? E não são as gargalhadas felizes dos filhos ao redor da mesa de jantar, partilhando as alegrias do seu dia, um som vindo do Éden? Se, com jeitinho, nos pusermos à escuta, fazendo silêncio cá dentro, seremos até capazes de escutar os sons dos passos de Deus…

Mas é também aqui dentro, e dentro da nossa casa, que a Tentação fala connosco. Como a Serpente na parábola bíblica, ela mistura a verdade com a mentira de uma forma tão ardilosa que, atraídos pela primeira, acabamos por acreditar na segunda. E se lhe dermos conversa, caímos no pecado.

“Deus sabe que, no dia em que o comerdes, sereis como deuses, ficando a conhecer o bem e o mal.” Tantas meias-verdades e tanta mentira aqui! Os homens que, hoje, estendem a mão e comem do fruto proibido, tornam-se como deuses, não porque conheçam o bem e o mal, mas porque assumem poder decidir o que é bem e o que é mal, num relativismo crescente, ao ponto de se armarem em donos da vida e da morte.

Ceder à tentação, em qualquer área da vida, não nos torna mais inteligentes, nem mais fortes, nem imortais: ironicamente, a única descoberta que fazemos é a da nossa fragilidade: “compreenderam que estavam despidos”.

Espezinhado por estes “deuses” ridiculamente cobertos de folhas de figueira, o Jardim foi-se transformando em deserto. Mas Deus, que é Amor (1Jo 4, 8), não nos abandonou a nós próprios, e desde o primeiro instante de pecado que decidiu dar-nos um Salvador, devolvendo-nos muito mais do que perdemos com Adão. “Ó feliz culpa, que nos mereceu tão grande Redentor!” Cantou São Tomás e cantamos nós, na Vigília Pascal. “De facto, como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos.”

Foi aí, no deserto da humanidade sedenta e faminta, que o Salvador nos veio procurar, para connosco e em nós, vencer o pecado, num duelo mortal que culminará na Cruz e triunfará na Ressurreição. Com Ele e como Ele, venceremos todas as tentações: a tentação do materialismo, que nos leva a usar a fé para satisfazer as nossas necessidades de pão, dinheiro, saúde, poder; a tentação da imprudência, às vezes disfarçada de confiança em Deus, que nos faz aproximarmo-nos perigosamente de situações de pecado, “caminhando na corda bamba” (ou sobre o pináculo do Templo), ignorando os meios de piedade, preguiçando quando se trata da educação dos filhos, e depois esperando que Deus aja em nosso favor; e a tentação da apostasia, que nos faz tomar decisões contrárias à nossa fé, para nos conformarmos com os critérios do mundo.

Hora da missa. Por uma hora inteira, sou de novo admitido ao Jardim do Paraíso, onde o Teu sopro insuflará em mim a Tua vida… Lá fora, Jesus, o deserto está mais árido que nunca, e o Tentador anda à solta, espalhando mentiras e citando até as Escrituras para nos enganar. Precisamos de orar e jejuar, como Tu, mas precisamos sobretudo que Tu, não os anjos, nos sirvas do teu Pão…

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