Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga
SUBINDO EM ORAÇÃO, DESCENDO EM ENTREGA
No segundo domingo da Quaresma, o Génesis apresenta-nos a grandeza de Abraão. Todos os anos. E todos os anos também, neste mesmo domingo, o Evangelho faz-nos subir a um alto monte para contemplarmos Jesus Transfigurado. Detenhamo-nos então por alguns instantes – não demasiados… – no cimo deste monte!
Há muito, muito tempo, no início da História Sagrada, um homem pôs-se à escuta. Havia certamente Alguém para lá da matéria a dar sentido e direção a tudo, pensava ele. De outra forma, como justificar esta ânsia interior por algo mais, este desejo incontrolável de eternidade? Abraão pôs-se à escuta. E Deus, que tem “os olhos voltados para os que O temem” e que não esperava senão por um ouvido atento, falou.
“Farei de ti uma grande nação e te abençoarei”, prometeu o Senhor. As promessas de Deus são sempre ousadamente grandes. O que devia Abraão fazer para acolher tamanha promessa?
“Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai”, disse-lhe Deus. Eis a primeira coisa a fazer: deixar. Deixar o que conhecemos, o que é seguro, as nossas ideias prontas – ou preconceitos – sobre Deus, os nossos sonhos, os nossos pecados. Deixar, num desapego interior de quem está disposto a largar tudo por um bem infinitamente maior.
Deus nunca nos pede para sair de um “lugar” sem nos dar coordenadas: “vai para a terra que Eu te indicar”. Gostaríamos que nos dissesse o nome desta terra e nos abrisse um caminho sem obstáculos, para a podermos ver no horizonte antes ainda de partirmos. Mas Deus conduz-nos passo a passo, curva a curva, Palavra a Palavra, na fé e na confiança, como a Abraão. “A nossa alma espera no Senhor”. A promessa foi feita, o caminho está aberto. Agora é preciso avançar.
Dois mil anos depois, Jesus convidou três amigos a subir com Ele ao monte. Tinha uma promessa a fazer-lhes, uma visão a oferecer-lhes: “o Filho do homem vai ressuscitar dos mortos.” Inebriados pela beleza de Deus, os olhos e os ouvidos cheios da sua glória, muito para além do que fora concedido a Abraão, os três discípulos julgaram por instantes já ter chegado: “Senhor, como é bom estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Mas a visão não era para já. Como Abraão, também os discípulos teriam de “deixar” o que conheciam e amavam, as suas ideias prontas – ou preconceitos – sobre o Messias, as suas expetativas demasiado humanas. Era preciso “descer do monte”, e descer muito, muito fundo, da transfiguração para a desfiguração do Messias, da glória do Céu para a ignomínia da Cruz.
Lembro-me da Venerável Cornélia Connelly, mãe e esposa, e do instante de “transfiguração” que viveu, a felicidade indescritível que experimentou, contemplando os filhos pequeninos a brincar no campo à luz do entardecer. De repente, um impulso interior claramente sobrenatural fê-la rezar: “Senhor, se esta felicidade não é para tua maior glória, toma-a, podes tirar-ma”. Jesus inspirava assim Cornélia a descer do monte da transfiguração para o vale da desfiguração que a vida lhe preparara, e que iria experimentar já no dia seguinte, no acidente trágico que lhe levaria o filho mais novo. Seria preciso atravessá-lo, seria preciso “deixar” que a sua felicidade lhe fosse cruelmente roubada, seria preciso “deixar” – como Abraão e os discípulos – o que mais amava. Primeiro, a cruz. Depois, fidelíssima, a promessa cumprir-se-ia.
A todos nos é, alguma vez, oferecido um instante de transfiguração, em que contemplamos na nossa carne a glória de Deus e a sua intensa felicidade. Mas a nenhum de nós é oferecida aqui na Terra a oportunidade de plantar uma tenda sobre o monte. A vida faz-se deste movimento vaivém entre o monte e a planície, subindo em oração e descendo em entrega, da transfiguração à desfiguração, da desfiguração à transfiguração, pela cruz até à glória eterna, todos os dias. “Sofre comigo pelo Evangelho”, diz Paulo a Timóteo, pois não há outra forma de trazer à luz “a vida e a imortalidade.”
“Apareceram Moisés e Elias a falar com Ele”. Moisés e Elias, a Lei e os Profetas, e Jesus no centro da Palavra, a encarnação das Escrituras. Toda a Bíblia fala de Jesus, e só entenderemos o messianismo de Jesus – da transfiguração à cruz e da cruz à glória – se o lermos à luz que irradia da Palavra inteira, a Antiga como a Nova: “Este é o meu Filho muito amado. Escutai-O.” É sobre Jesus a promessa antiga: “Por ti serão abençoadas todas as nações da Terra.” E a nós hoje, que estamos decididos a dar a nossa carne à Palavra inteira, Deus promete: “Serás uma bênção”.
Hora da missa. Sobre este monte, contemplo já aqui a Tua glória. Como os discípulos, caio de rosto por terra diante da Tua revelação, esse Pão “resplandecente como o sol”, “branco como a luz”. Sei que Elias, Moisés, Abraão, os santos e os anjos rodeiam o Teu altar. Como é bom estar aqui, Senhor! Mas dentro de instantes, descerei do monte, para a planície dos meus dias. Que eu desça só Contigo, Jesus, para Contigo percorrer o caminho da cruz…
Deixar num desapego interor…. até aquilo que nos parece mais legítimo e necessário….
Como guia e bússola :APENAS a tentativa de confiar total e simplesmente na Palavra de Deus.
Fazei o que Ele vos disser – a orientação recebida da Nossa Mãe.