Em Caná da Galileia...


Domingo II da Quaresma, ano C

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicadas no jornal diocesano Correio do Vouga

APRENDAMOS COM ABRAÃO

As leituras de hoje entornam rios de luz sobre a nossa caminhada quaresmal: são as estrelas do céu de Abraão, é o rosto transfigurado de Jesus. Deixemo-nos iluminar!

“Olha para o céu e conta as estrelas, se as puderes contar”, diz Deus a Abraão, nos primórdios da História – e da Bíblia. Cá em casa, quando lemos esta Palavra gostamos de fazer como Abraão, olhar o céu e contar estrelas. Como é belo, o céu iluminado! “Assim será a tua descendência”, promete o Senhor. Uma descendência numerosa, mas também luminosa. Se somos descendentes de Abraão, somos estrelas chamadas a iluminar o mundo. Fazemo-lo?

Abraão não tinha filhos. A promessa de uma descendência numerosa não era, de todo, razoável. Poderia ele acreditar na voz que assim lhe falava? “Abraão acreditou”. Que fé a sua! Ele tinha muito menos razões do que nós para acreditar. Não possuía uma Bíblia, não tinha presenciado  milagres, não tinha um Catecismo nem um Papa, não conhecia as histórias dos santos, não tinha uma paróquia com quem caminhar. E ainda assim, “Abraão acreditou”. Aprendamos!

Mas a promessa de Deus não parou aqui: “Aos teus descendentes darei esta terra,” a terra onde Abraão vivia como estrangeiro! Para selar a sua promessa, o Senhor submeteu-Se ao ritual da época, e depois manifestou-Se como luz e fogo iluminando a noite: “Quando o sol desapareceu e caíram as trevas, um brasido fumegante e um archote de fogo passaram entre os animais cortados.”

Ainda hoje, os descendentes de Abraão agarram-se a esta promessa de terra para justificar guerras e ódios. É tentador ver aqui uma promessa de terra material, “desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates”. Mas o Senhor falava tanto da terra material quanto falara das estrelas materiais que brilhavam sobre ela… S. Paulo entendeu-o quando disse aos Filipenses: “A nossa pátria está nos Céus.” Porque se a nossa pátria estivesse aqui, teríamos “por deus o ventre”, viveríamos para o prazer que as coisas nos proporcionam e procederíamos “como inimigos da Cruz de Cristo”. Só ama a Cruz quem não teme crucificar a carne, “o corpo miserável”, certo de que, pela morte para este mundo, se tornará “semelhante ao seu corpo glorioso” e habitante do Céu, a verdadeira Terra Prometida.

Isto mesmo, Jesus procurou transmitir aos seus discípulos durante três anos de pregação. Um dia, no cimo do monte, em vez de palavras, Jesus ofereceu-lhes uma visão, que conhecemos como o mistério da Transfiguração, esse mistério em que todas as quintas-feiras meditamos durante a recitação do santo Terço. “Enquanto orava, alterou-se o aspeto do seu rosto e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente…” Disseram vários santos videntes que, se pudéssemos ver uma alma em pecado mortal, morreríamos de terror; e que se pudéssemos ver uma alma em estado de graça, entraríamos em êxtase. A luz que emana de Jesus Transfigurado é a luz que recebemos no nosso batismo e quer agora de novo inundar a nossa alma, iluminar o nosso interior e fazer de nós a “estrela brilhante” que Abraão contemplou no céu da sua fé. Não a impeçamos!

No início da História Sagrada, Abraão encontra o Senhor luminoso sozinho, no meio da noite. As trevas que o envolvem não são apenas exteriores: “apoderou-se de Abraão um sono profundo, enquanto o assaltava um grande e escuro terror.” É a “noite escura” dos místicos, que purifica a nossa intenção e nos ensina a desejar o Senhor por Si mesmo, e não por qualquer consolação que Ele nos possa dar. E é só quando nos adentramos nesta “noite escura”, que a luz rompe as trevas, como aconteceu com Abraão.

Foi também de noite que a Transfiguração aconteceu: os Apóstolos “estavam a cair de sono”, e sabemos por outras passagens que era de noite que Jesus subia aos montes para rezar. Como na história de Abraão, a luz rompeu as trevas e iluminou os que tiveram a coragem de enfrentar os seus terrores interiores e subir ao monte no meio da noite.

Depois de selada a promessa com Deus, o fogo e a luz apagaram-se e Abraão ficou só. Depois da Transfiguração, e apesar de todos os esforços de Pedro para o impedir, os visitantes celestes desapareceram, a luz apagou-se no rosto de Jesus e os discípulos ficaram com “Jesus sozinho”, a caminho de Jerusalém – e da Cruz.

A vida cristã é isto. É esperar a visita do Senhor no meio da noite, encontrá-l’O num raro momento de luz para selar com Ele uma aliança que compromete a vida inteira, e depois descer o monte com “Jesus sozinho”, sem esperar consolações ou recompensas.

Hora da missa. Não foi preciso aguardar uma noite inteira, nem subir a um monte escuro… É tão simples, hoje, encontrar o Senhor! No meio da nuvem que esconde o mistério divino, escutamos a Palavra do Pai: “Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O.” Sobre o altar, está a Carne esquartejada e o Sangue vivo com que Deus estabelecerá a sua aliança connosco. “Mestre, como é bom estarmos aqui!” Mas também este curto momento luminoso irá acabar. É preciso descer o monte e continuar a caminhada rumo à Pátria…

5 Comments

  1. Catarina Silva

    Maravilha de reflexão!
    Até o antigo testamento, que para mim é tão difícil de entender, fica claro e em sintonia com o novo testamento…
    Como é importante esta lucidez e este discernimento que a Teresa tem, para o entendimento das Escrituras! Devia fazer um livro com estas reflexões 🙂

    • Catarina, segundo o jornal me disse no início, este meu trabalho não é remunerado, mas no final da minha colaboração (imagino que os três anos litúrgicos, A, B e C) publicarão um livro com o conjunto. 🙂 Bj

      • Catarina Silva

        Que bom, Teresa!
        É que eu acho que a Teresa não tem bem a noção da qualidade destas reflexões…A Teresa não tem noção da qualidade e nós (e provavelmente também os Srs do jornal), não temos noção do tempo e da energia despendida para elaboração das mesmas…Falo por mim, que quando tenho de encaixar mais alguma coisa na minha logística familiar, começa-me logo a tremer o olho esquerdo…Imagino a Teresa com a “loucura” que deve ser a sua logística familiar, encaixar tempo físico (porque estamos ainda neste mundo, dependentes do tempo, não é), para conseguir escrever com esta constância e com esta profundidade…
        Só Deus pode recompensá-la!

        • Catarina Ramos Tomás

          Eu sou fã do papel!
          E estou a construir o meu/seu livro pois a cada reflexão, imprimo, leio, sublinho, releio e volto a ler ao longo dos dias da semana…
          Mas o livro será muito bem vindo!
          Partilho da opinião da Catarina. Também esta reflexão semanal me ajuda muito. E às vezes dou por mim na homilia a pensar que o meu Pároco devia lê-la também! 🤣 Às vezes penso, “esta semana a Teresa esteve melhor que o Senhor Padre…”
          E os últimos cinco minutos da minha catequese são sempre baseados na reflexão da Teresa, pois a forma simples como explica a Escritura, é acessível também às crianças.

        • Amen.
          Obrigada, Catarina, por ter escrito aquilo que eu penso tantas vezes.
          Am mim tremem-me os dois olhos 😉

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