Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga
PALAVRA, COMIDA E BEBIDAS DOCES
O exílio na Babilónia chegara ao fim, o povo regressara a Jerusalém, as muralhas da cidade estavam finalmente reconstruídas. Chegou a hora de reconstruir também a vida espiritual, recuperando a proclamação da Palavra. E é da Palavra que este domingo nos vai falar.
Naquele tempo – seremos capazes de imaginar? – não havia livrarias, nem bibliotecas, nem internet. A Bíblia não estava à distância de um clique no computador, nem apanhava pó nas estantes. Ainda não era um bestseller! Pelo contrário, era uma coleção de pergaminhos, rolos guardados em pequenas vasilhas de barro, cada palavra gravada com muito esforço e muitas horas de trabalho. Com que emoção e respeito não havia o povo de olhar para estes rolos? Pois se não havia nenhuma outra forma de conhecer a Palavra! Era preciso que os escribas a lessem em voz alta, já que o povo não sabia ler. E era preciso que o povo a escutasse com a máxima atenção, para a poder entender e memorizar, e assim, levá-la para casa e contá-la aos filhos, transmitindo-a de geração em geração, ao redor da mesa familiar.
Naquele tempo, “Esdras trouxe o Livro da Lei perante a assembleia de homens e mulheres e todos os que eram capazes de compreender.” Há muitos anos que o povo não escutava a Palavra, pois estivera exilado. Que alegria agora! Esdras subiu a um estrado e os escribas disseminaram-se entre o povo, para irem repetindo a Palavra proclamada (já que não havia microfones…). E ao repetir, também a explicavam, “de maneira a que se pudesse compreender a leitura.” E assim ficaram, sacerdotes, escribas e povo, “desde a aurora até ao meio dia”. Uma manhã inteira!
Quem se expõe à Palavra de Deus, expõe-se também a alguns riscos. O primeiro é o risco das lágrimas: “todo o povo chorava, ao escutar as palavras da Lei.” Antes, o nosso espelho era o mundo, e ao comparar a nossa vida com a de tantos que roubam e matam, sentíamo-nos felizes por não sermos como eles. Mas agora, o espelho é a Palavra, e ao escutá-la, damo-nos conta do quanto nos desviámos dela. Podemos, finalmente, reconhecer que somos pecadores, e choramos amargamente.
Que fazer, perante a evidência da nossa miséria? Desesperar? Pelo contrário: o arrependimento é motivo de alegria, pois é ele que abre a porta à salvação. Assim o explicou Esdras: “Não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza.”
Esta alegria tornou-se perfeita quando, por fim, a Palavra de Deus encarnou em Jesus Cristo, “pela força do Espírito”. A partir de então, já não se trata de um livro, nem de pequenos rolos em vasilhas de barro, mas de uma Pessoa. “Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”, afirmou Jesus na sinagoga. Deixámos de estar diante de um conjunto de leis morais ou religiosas, para estarmos diante de Jesus, este Jesus a quem amamos e adoramos, e que queremos seguir.
Ainda surgem lágrimas nos nossos olhos, sim, mas agora são mais belas: não choramos porque nos desviámos da Lei, antes choramos porque ferimos o Senhor, ou como dizia o Pobrezinho de Assis, porque nos damos conta de que “o Amor não é amado”. Já não queremos cumprir a Lei para não merecer o castigo, mas sim porque queremos amar o Senhor. Experimentamos uma autêntica conversão do nosso próprio olhar, que deixa de se centrar em nós, para se voltar para o Senhor. É a boa nova anunciada aos pobres, a redenção aos cativos, a vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos.
Quando a Palavra faz caminho em nós, levando-nos das lágrimas à conversão, da conversão à adoração, tornamo-nos verdadeiramente parte, nas palavras de S. Paulo, do Corpo de Cristo, que é a Igreja. E como o corpo humano, também o Corpo de Cristo é formado por muitos membros, todos importantes, cada qual com uma missão específica. Quando escreveu a sua carta, Paulo estava consciente das divisões na Igreja, mas longe de imaginar até onde elas podiam ir. Hoje, é um verdadeiro escândalo a Igreja estar estilhaçada em milhares de fragmentos, como se cada membro do corpo decidisse ter vida própria e tornar-se independente. Vivemos mais uma semana de oração pela unidade dos cristãos. Sejamos insistentes na nossa oração!
Hora da missa. “Hoje é um dia consagrado a nosso Senhor.” Viemos, não por uma manhã inteira, mas apenas por uma hora, escutar a Palavra, que será proclamada de um lugar elevado – o ambão – como no tempo de Esdras. Temo-la em nossas casas, temo-la talvez no aplicativo do telemóvel, podemos lê-la e sublinhá-la, mas em nenhuma outra altura ela pode agir em nós como durante a sua proclamação na Eucaristia, pois aqui, ela é verdadeiramente Palavra encarnada. Não estejamos distraídos! Escutemos atentamente, memorizemo-la, deixemos que nos comova, interpele, converta. Então, ela fará com que os nossos olhos se voltem para Jesus – “Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga” – e O adorem, por fim, no Pão e no Vinho consagrados. O povo reunido por Esdras celebrou a Palavra com uma boa refeição e bebidas doces. Nós temos muito melhor…