Em Caná da Galileia...


Domingo IV da Quaresma, ano A

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

HÁ QUEM PREFIRA CONTINUAR CEGO

A Quaresma é uma caminhada catecumenal, em que somos chamados a fazer memória do nosso batismo e a dar graças por ele. Se no domingo passado meditámos no símbolo da água, hoje perscrutamos o mistério da luz.

“Enche a âmbula de óleo e parte. Vou enviar-te a Jessé de Belém, pois escolhi um rei entre os seus filhos.” Assim falou Deus a Samuel. Que bela, a expressão: enche a âmbula de óleo… Não creio que nestes dias a minha âmbula esteja realmente cheia do óleo santo de Deus. Pergunto-me se não me deverei demorar um pouco mais na oração, na visita ao sacrário, no encontro silencioso com o Único que pode, realmente, encher a âmbula da minha vida e do meu coração, agora que é Quaresma…

Mas ninguém enche a âmbula de óleo para consumo próprio. “Parte”, repete-nos o Senhor. É preciso partir ao encontro do outro, do que trabalha connosco, do estrangeiro, do doente, e do que vive em nossa casa também. Estaremos, como Samuel, a obedecer prontamente ao Senhor?

Por fim, “Samuel pegou na âmbula do óleo e ungiu (David) no meio dos irmãos.” Penso na ternura das mães que ungem com óleo perfumado o corpinho dos seus bebés, depois do banho. E na ternura das filhas que ungem com óleo perfumado o corpo envelhecido, doente, deformado das suas mães, no fim da vida. Penso em todos os profissionais de saúde que ungem a Carne dos que sofrem. Penso no sinal da Cruz, que desenho com água benta sobre a fronte dos meus filhos, quando lhes dou um beijo de boas noites. Penso em todas as unções que fazemos uns aos outros, reverenciando a imagem e semelhança de Deus no irmão.

E a primeira destas unções é a unção batismal. “Com óleo me perfumais a cabeça…” Éramos bebés, os mais pequeninos, como David, de entre os irmãos de fé reunidos na igreja paroquial. “Estão aqui todos os teus filhos?” Pergunta Samuel a Jessé. Falta um, o mais novo. “Manda-o chamar, porque não nos sentaremos à mesa enquanto ele não chegar”. Estão aqui todos os teus filhos? A pergunta é para nós também. Há alguém em tua casa que ainda não seja batizado? Não esperes que o teu bebé cresça! Há alguém em tua casa que ainda não vá à missa? Não esperes pela inscrição na catequese! O Senhor conta com cada um de nós, e que desilusão, se o mais pequenino não vier!

“Daquele dia em diante, o Espírito do Senhor apoderou-Se de David”. Do dia do nosso Batismo em diante, o Espírito Santo apodera-Se de nós, ungindo-nos reis, como a David. É difícil acreditar neste dogma da nossa fé. Assim como David continuou a pastorear o rebanho do pai, também aquele bebé batizado continua igual ao que era, aquele adulto batizado não ocupa um cargo mais importante na sociedade do que qualquer outro adulto… Mas “Deus não vê como o homem; o homem olha às aparências, o Senhor vê o coração.”

É também de unção batismal que nos fala o Evangelho. Renovando o gesto criador de Deus no Génesis, que fez o homem a partir de um pouco de argila humedecida, Jesus “cuspiu em terra, fez com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego.” Depois, ordenou-lhe: “Vai lavar-te à piscina de Siloé”. Só seremos curados da nossa cegueira de nascença – o pecado original, que não é culpa pessoal, como Jesus explicou aos fariseus – se nos lavarmos na “piscina do Enviado”, a água do Seu lado aberto.

Vale a pena: “Ele foi, lavou-se e ficou a ver.” E que viu este cego? “Já O viste: é Quem está a falar contigo”, diz-lhe Jesus. Recuperando a visão, limpo da sua cegueira original, o cego foi capaz de ver em Jesus o Messias, o Enviado. “Eu creio, Senhor!” Fortalecido com o dom da fé, é preciso que viva agora como “filho da luz”, dando os frutos correspondentes: “porque o fruto da luz é a bondade, a justiça e a verdade.”

Mas os fariseus “não quiseram acreditar”. Testemunhas de um impressionante milagre, escolheram fingir que nada tinham visto, tornando-se, eles sim, verdadeiramente cegos. Como é possível negar o óbvio? Sim, foi possível, e continua a sê-lo. Muitos cristãos sentem-se confortáveis e tranquilos numa prática religiosa de rotinas instaladas, e ai de quem questionar a catequese tradicional, a seriedade da sua vida de fé, as razões que os fazem receber ou distribuir sacramentos! Ai de quem levantar a fasquia para que saltem mais alto! Ai de quem interromper o seu carreirismo religioso! Ai de quem lhes fizer sombra! Os fariseus preferiram expulsar da sinagoga aquela testemunha de Cristo a deixar-se converter. E muitos hoje gostariam de poder fazer o mesmo.

“Era sábado esse dia em Jesus fizera lodo e lhe tinha aberto os olhos.” Era, de facto, o dia apropriado para realizar o milagre da salvação: o dia do Senhor. “Desperta, tu que dormes!”

Hora da missa. “Eu sou a luz do mundo”, dizes-me, a mim que caminho por “vales tenebrosos”. Não permitas que me acomode na cegueira, mas brilha sobre mim! Enche de óleo a minha âmbula, lava-me com a Água do teu lado aberto, recria-me com o lodo das tuas mãos! Venho aqui, Jesus, pois “para mim preparas a mesa, e o meu cálice transborda” …

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