Em Caná da Galileia...


Domingo XV do Tempo Comum, ano A

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

DEUS TEM FÉ EM NÓS

“Os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que se há de manifestar em nós.” Tudo vai ficar bem, lemos e escutamos por aí, nestes tempos de pandemia, como palavra profética. Tudo vai ficar bem, assegura-nos hoje o Senhor numa verdadeira profecia. A nós, que acreditamos e esperamos na Palavra de Deus, resta-nos trabalhar para que tudo fique bem através de nós, e não apesar de nós.

A pequena Sara mostrava-me, feliz, o cartaz com o ciclo da água, que a professora da televisão ensinara a fazer: “Vês, mãe, é sempre assim”, explicava. “A água desce do céu, trabalha na terra e só depois regressa ao céu.” É sempre assim também, diz Isaías, a Palavra de Deus: desce do Céu e só regressa depois de realizar a sua missão. A nós, espanta-nos a paciência infinita do Criador. Como pode Deus observar o mal do mundo sem intervir? Como pode ele esperar, sem pressa, que a chuva regue a terra, a fecunde e a faça produzir? E como pode ele aceitar que a maior parte de nós seja incapaz de se tornar pão para saciar a fome dos irmãos? Só posso concluir que Deus não conta o tempo como eu o conto, eu que, antes de ler um artigo na Internet, sou de imediato informada do tempo que o artigo me levará a ler: “Tempo de leitura: dois minutos”… Terá igualmente limite de tempo, a atenção que dedico à família, aos amigos, aos irmãos? E a atenção com que escuto o meu Deus?

“Vai ficar tudo bem”, repetem-nos, sem se darem conta de que essa é a primeira promessa da Bíblia, ainda no Génesis, à porta do Jardim do Paraíso. Graças à Cruz do Salvador, o mal já foi vencido, o Céu já foi aberto: “Visitastes a terra e a regastes, enchendo-a de fertilidade. As fontes do céu transbordam em água e fazeis brotar o trigo”. Nem os mais belos contos de fadas têm um final tão bonito como o “viveram felizes para sempre” das profecias de Isaías, dos salmos, do Apocalipse!

No entanto, diz-nos Jesus no Evangelho de hoje, cada um de nós é totalmente livre de acolher ou de rejeitar esta felicidade eterna, tal como diferentes terrenos acolhem ou rejeitam a semente que neles cai: “Saiu o semeador a semear. Enquanto semeava, caíram algumas sementes ao longo do caminho… outras caíram em sítios pedregosos… outras caíram entre espinhos…” Pasmo sempre diante desta forma divina de semear. Porque não guarda o divino Semeador as suas sementes apenas para a boa terra? Porque desperdiça Ele tantas sementes, sabendo melhor que nós que dificilmente frutificarão as que caírem em terreno pedregoso, entre espinhos ou à beira do caminho? Fico a pensar… Não será a fé de Deus em nós infinitamente maior que a nossa fé em Deus? Não esperará Deus de nós infinitamente mais do que nós de Deus? Se eu acredito em Deus, muito mais acredita Ele em mim, na minha capacidade para O amar, ainda que eu seja, como explica o Evangelho, uma pessoa sem raiz em si mesma, inconstante, sem compreensão, sufocado com os cuidados deste mundo. Porque tem esta imensa fé e esta imensa esperança em nós, Deus não desiste do mundo nem da História.

Entre o tempo de Deus e a minha pressa, entre a imensa esperança de Deus e a minha fragilidade, joga-se a minha vida. Deixarei eu que o Senhor prepare a terra do meu coração, revolvendo-a, regando-a, cavando-a, a fim que se torne macia e profunda, capaz de acolher a semente da Palavra e dar fruto abundante? Ou vivo com este medo terrível de me deixar curar e converter, como Jesus explicou aos discípulos em privado?

Paulo, como também Jesus noutra passagem do Evangelho, compara o processo de conversão a um parto. Que imagem poderosa! Em trabalho de parto, qualquer mulher sabe que não é possível fugir, esconder-se ou voltar atrás. A angústia terrível que se abate sobre a parturiente – com ou sem analgesia, no tempo de Jesus como no nosso – só se resolve avançando, dando tudo, esgotando as forças até ao limite. Geralmente, é quando pensamos ou gritamos “não aguento mais”, que o choro do recém-nascido nos diz, “não precisas de aguentar mais!” Teria a mãe que abraça então o seu bebé novinho em folha, no maior êxtase da natureza, o desplante de se queixar das dores do parto diante da amiga estéril? “Muitos profetas e justos desejaram ver o que vós vedes e não viram e ouvir o que vós ouvis e não ouviram”, diz-nos Jesus, para que saibamos que até os anjos invejam santamente as dores do parto da nossa conversão.

Hora da missa. Tantos com medo de aqui vir, Jesus, pois “veem sem ver e ouvem sem ouvir”! E, contudo, se “vai ficar tudo bem”, é por causa desta hora! Eu sei que vir aqui é, de facto, perigoso. Quando Te permito que remexas a minha vida e escaves a minha terra, quando me abro à semente da Tua Palavra e a deixo criar raiz, descubro que estou num caminho sem retorno. Como a chuva e a neve que caem do céu e só regressam depois de produzir fruto, como uma mulher em trabalho de parto que só descansa depois de dar à luz um filho, também eu me esgotarei nesta aventura divina, até descansar, por fim, na praia eterna do Teu amor…

2 Comments

  1. Faz este domingo 24 anos que a minha mãe partiu para o Pai Celeste, era leitora, catequista, salmista numa das igrejas da nossa paróquia de Nossa Senhora da Graça Palhais/Santo António. Na sua lápide gravámos o salmo desse domingo: “A semente caiu na boa terra e deu muito fruto”.

    • Que maravilha, Ana! Uma inspiração de Deus realmente bela, a citação bíblica. Que se possa dizer o mesmo de cada um de nós!

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