Em Caná da Galileia...


Domingo XXII do Tempo Comum, ano C

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

ESCOLHAS BÁSICAS À LUZ DO EVANGELHO

Hoje, o tema central da Palavra de Deus é a humildade. Neste “húmus” germinam, saudáveis, as sementes do Reino, e fora dele, nada cresce.

Jesus tinha sido convidado para o almoço festivo do Shabbat em casa de um importante fariseu. Mas a abundância, a riqueza e a mania das grandezas ao redor da mesa em nada se pareciam com a simplicidade da refeição festiva da sua casa em Nazaré… “Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares”, Jesus interveio: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”, concluiu.

Dois mil anos passaram. Uma mesa posta, as travessas no centro. “Eu quero a carne mais tostadinha!” Diz um filho. “Não, eu já tinha pedido primeiro!” Responde outro. A tentação é trazer os pratos já feitos para a mesa, evitando as discussões entre irmãos. Ou então, no caso de um filho único, servir-lhe o pedaço de carne mais saboroso, a fatia de bolo maior. Não havemos de dar ao filho o melhor?

Um sofá em frente de um televisor, uma família que vai iniciar o seu serão. “Chega para lá! Senta-te tu no chão, que eu quero ficar no sofá!” O comando da televisão voa sobre as cabeças até alguém o agarrar. “Hoje decido eu o que vamos ver!” De novo, é tentador comprar dois sofás em vez de um; duas televisões em vez de uma. Ou talvez até uma para cada quarto, permitindo aos filhos – e aos pais – ver o que quiserem, quando quiserem, com o conforto que quiserem. Acabam-se as discussões…

Mas então o que fazemos com o Evangelho? Porque se o Evangelho não servir para nos ajudar a tomar decisões tão básicas e, diríamos, banais, como a escolha do lugar a ocupar na sala comum, do bife a tirar da travessa, da cedência do comando do televisor, então o Evangelho não serve para nada.

“Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar”, diz Jesus. Quando te sentares à mesa, quando te sentares no sofá da sala, quando tiveres de dar uma opinião, quando te sentires tentado a dominar uma conversa ou a impor a tua vontade, recorda-te do Evangelho… Porque é no Evangelho que nascem as famosas “boas maneiras”, é no Evangelho que ganham sentido as palavras simples como “obrigado, por favor, com licença”, que o Papa Francisco apresenta como fundamentais no relacionamento familiar. Não há, para um pai e uma mãe, melhor manual de educação do que a Palavra de Deus! Por isso, o livro de Ben-Sirá surge como um conjunto de conselhos de um pai para o seu filho: “Filho, em todas as tuas obras procede com humildade…”

“Quando ofereceres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos nem os teus irmãos, nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos, não seja que eles por sua vez te convidem e assim serás retribuído”, continua Jesus. Que Palavra tão difícil de praticar, para nós que estamos sempre à procura da retribuição! As relações sociais vivem deste negócio de dar e receber, de dar para receber. Esta retribuição chega a níveis tais, que em algumas famílias, os filhos são pagos por realizarem as tarefas domésticas ou ficarem a tomar conta de um irmão mais novo! Educando assim, como pretendemos que o Evangelho ganhe raízes no “húmus” do seu coração?

Mas é sobretudo no mundo profissional que experimentamos a lógica da retribuição. Estaremos dispostos a prestar um serviço excecional, saindo do nosso conforto ou inclusive da nossa área do saber, apenas por amor? Ou só o fazemos se o patrão estiver a observar e se virmos nisso uma oportunidade de ascensão profissional? Os desafios do Evangelho causariam uma revolução no mundo, se os levássemos a sério!

Na sua parábola, Jesus deu o exemplo de um banquete nupcial. Dois mil anos depois, os banquetes nupciais continuam a estar tão distantes desta parábola como a terra o está do céu. É escandaloso como os cristãos se submetem às imposições do mundo quando se trata de celebrar o sacramento do matrimónio! Alugam espaços caríssimos, chegam ao ponto de contrair dívidas para pagar o banquete e, da parte dos convidados, tudo gira em torno de um jogo social, em que o valor da prenda é medido pelo grau de retribuição que se pretende atingir. Escandaloso! Na Alegria do Amor, o Papa Francisco ousou denunciar tais excessos e desafiou: “Queridos noivos, tende a coragem de ser diferentes, não vos deixeis devorar pela sociedade de consumo e da aparência.” (AL 212) Possam os futuros noivos católicos pôr em prática esta Palavra! Então sim, ser-lhes-á retribuído no Céu.

As “Bodas de Caná” no Acampamento…

Hora da missa. Como é simples, o nosso Deus! Bem diz o autor da Carta aos Hebreus, que no Banquete Nupcial do Reino não há nenhuma evidência sensível da grandeza de Deus – nem o som da trombeta, nem o fogo ardente, nem a nuvem escura das teofanias do Antigo Israel. Tudo aqui é simples, pão e vinho sobre a toalha branca. Nada vemos, nada entendemos, e contudo, aqui, no mistério da Eucaristia, habitamos já a “Jerusalém celeste” e celebramos a fé rodeados “de muitos milhares de anjos em reunião festiva, de uma assembleia de primogénitos inscritos no Céu”…

9 Comments

  1. Catarina Silva

    Tão Bom!

    “Mas então o que fazemos com o Evangelho? Porque se o Evangelho não servir para nos ajudar a tomar decisões tão básicas e, diríamos, banais, como a escolha do lugar a ocupar na sala comum, do bife a tirar da travessa, da cedência do comando do televisor, então o Evangelho não serve para nada….Os desafios do Evangelho causariam uma revolução no mundo, se os levássemos a sério!”

    É mesmo isto!
    Obrigada!

  2. Bingo!!!! Viver o Evangelho escandaliza os que estão, às vezes, tão pertinho de nós e tão agarrados às tradições e modas e “boas” maneiras sociais… Ter coragem de ser diferente, de ser de Jesus! – é uma boa aposta na vida e para a Vida!

  3. Obrigado Teresa por mais uma maravilhosa reflexão.
    Que saibamos sempre ir buscar o exemplo ao Evangelho, mas sobretudo que o consigamos colocar em prática no mundo de hoje, no nosso dia-a-dia….Por vezes é tão difícil!
    Bem-haja pelo vosso exemplo de santidade.

  4. “Mas é sobretudo no mundo profissional que experimentamos a lógica da retribuição.”
    Julgo que esta é uma grande tentação e o que muitas vezes “mina” a vida de um casal…
    Acredita-se muito mais que se dermos mais tempo, se investirmos e nos empenharmos mais no nosso trabalho, a nossa entidade patronal nos irá retribuir mais e melhor…
    Por vezes confia-se mais nisso do que confiamos na nossa vocação, no nosso matrimónio, no nosso marido, nos nossos filhos, naquilo que Deus sonhou para nós e de onde obteremos uma maior e melhor “retribuição”…
    Em quem investimos o nosso tempo e nos empenhamos mais para obter melhor e maior retribuição?
    Em quem confiamos mais que nos dará a melhor retribuição?

  5. Susana Machado

    Viver ao jeito de Jesus por vezes escandaliza alguns e realmente a lei da retribuição está diariamente presente na sociedade, pois só se faz se nos deram algo em troca ou se alguém nos deu primeiro!!!!
    É tão bom fazer sem esperar retorno…
    Obrigada a todos pela partilha.

    Beijinhos

    • É realmente tremendo quando refletimos sobre este assunto…não só ao nível profissional mas também pessoal. Participar num casamento dito católico em que sabemos já à partida que os noivos, para corresponder às exigências das familias, estão à espera das ofertas dos convidados para pagar as dívidas da boda e ainda dizem “e mesmo assim não sabemos se vai dar!” com uma angústia enorme……é qualquer coisa de tremendo! Ter um casal de noivos amigos, católicos, que dizem “não podemos casar porque não temos dinheiro para a festa” e assim adiam tudo o que o Céu lhes queria oferecer por Amor…
      “Mas então o que fazemos com o Evangelho?”
      “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8, 21)
      O que custa é que os primeiros que escadalizamos são os da nossa família mais alargada…e a duvida está em como gerir esse conflito?! Com o pai, com a mãe…com os tios e primos…? Porque até eles esperam retribuição pelas fraldas trocadas, as noites mal dormidas, o dinheiro gasto a pagar-nos os estudos…. Como se faz?!

      • Dizia por estes dias (contou-me um amigo) um empresário ligado a festas de casamentos, que uma das cenas mais comuns hoje em dia é os noivos, no final da festa, à sua beira, a abrir ali mesmo os envelopes com dinheiro que lhes foi dado de presente, e a contar cêntimo a cêntimo, enquanto murmuram: “Não sei se vai dar…” Dizia ele que a angústia dos noivos faz pena…

        • Onde podem entrar Jesus e Maria aí?! Como podem os noivos viver a Alegria das Bodas se acreditam que essa alegria pode ser comprada com serviços de catering, decorações, fotografos e banda a tocar ao vivo?! Participei nos encontros organizados pelo CPM e não se tocou nesses assuntos… mas interessante foi que no momento de escolher o menu da dita boda (importantííííssimo, segundo percebi depois!) ouvi “Os convidados gostam! Não importa que a noiva não goste…ela nem vai conseguir comer nesse dia!”.
          Seria tão bom os noivos poderem ser acompanhados, dentro da Igreja, de uma forma mais clara, mais autentica, mais concreta, menos moralista e mais prática! Mas só temos ensinamentos da sociedade materialista…o casamento serve para pagar as dividas sociais das nossas familias…é a tal lei da retribuição!
          Da Igreja, após a conclusão do processo, apenas ouvi: “depois venha cá batizar o filho, sim?!” – e pensei “e poder vir cá já neste domingo participar na eucaristia, não?” :/

  6. Muito obrigado Teresa, pela sua reflexão, que nos ajuda tanto a rezar. Ter a noção de que as relações sociais, mesmo entre quem aparentemente é católico, não se regem pela “lei” do amor é das maiores tristezas e fontes de sofrimento para nós. Passar do “dar para receber” para o “dar por que te foi dado”, passar da lógica do contrato para a “lógica” do amor, permite, primeiro, constatar e, depois, viver o mandamento evangélico: “de Graça recebestes, de Graça deveis dar”. Tal implica não corresponder à lógica do contrato, mesmo quando existem “dívidas por pagar”. Quantas vezes a vivência dos católicos é confundida com as boas maneiras, com o agradar aos outros, com o parecer bem, com o evitar conflitos familiares ou sociais. Nesta lógica, Jesus nunca teria expulsado os vendedores do Templo, nunca teria dito que Sua Mãe e irmãos são quem faz a Vontade do Pai Celeste, nunca teria ordenado ir anunciar o Reino em vez de enterrar o próprio pai, ou ensinado que não pode ser seu discípulo quem amar mais a família do que a Ele.

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