Em Caná da Galileia...


Domingo XXIV do Tempo Comum, ano A

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

O PERDÃO CURA QUEM PERDOA

Hoje falamos de perdão, palavra cada vez mais difícil de entender no nosso mundo ferido. Escutemos!

De onde vem o perdão, de onde nasce a necessidade de perdoar, e porquê fazê-lo? A Palavra de Ben-Sirá, do salmo, de S. Paulo e do Evangelho – toda a Palavra de hoje – aponta para uma única fonte, para uma única razão de ser do perdão: Deus. É Ele o único que verdadeiramente perdoa, pois nós, Suas criaturas, nada mais fazemos do que é nossa obrigação: oferecer de graça o que de graça recebemos.

Assim nos conta Jesus na parábola: “O Reino de Deus pode comparar-se a um rei que quis ajustar contas com os seus servos”, explica. “Apresentaram-lhe um homem que devia dez mil talentos”, quantia altíssima, totalmente absurda para uma dívida. Será que temos consciência da dívida que representam cada um dos nossos pecados? Num tempo em que se prefere falar de “defeitos” em vez de pecados, num tempo em que, mesmo no confessionário, os nossos pecados são “psicologizados”, ao ponto de perderem o valor, será que nos damos conta do que significa, da parte de Deus, o seu perdão? Precisamos de contemplar a Cruz de Cristo, se queremos ver os efeitos do pecado e o peso de cada um. Tomemos consciência de que o nosso pecado não é coisa pouca, antes algo terrível, que desfigurou o Salvador e O fez jorrar sangue de cada poro e de cada ferida…

É exatamente a nossa inabilidade em reconhecer o nosso pecado que nos faz valorizar exageradamente o pecado do outro. Porque nos achamos impecáveis, pessoas de bem, merecedores de tudo o que é bom – cegos que somos diante da nossa própria culpa – revoltamo-nos quando somos atingidos pelo pecado do irmão. Já Ben-Sirá se perguntava, estupefacto: “Um homem guarda rancor contra outro e pede a Deus que o perdoe?” E na parábola, Jesus exprime a indignação divina perante a nossa mesquinhez, que nos faz guardar rancor perante os que nos ofendem, ainda que nenhum ser humano nos deva mais do que uns míseros “cem denários”, quantia irrisória quando comparada com os “dez mil talentos” que todos devemos a Deus nalgum ponto da nossa vida.

Ao perdermos de vista a extensão do perdão divino que Jesus nos alcançou na Cruz, perdemos perspetiva na contemplação da nossa história pessoal e da própria História universal. Assim se explicam os movimentos que procuram reescrever a História, decapitando estátuas e retirando as personalidades e a própria Igreja dos seus contextos históricos, incapazes de olhar para os nossos antepassados com a misericórdia com que Deus olha para nós: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34) Assim se explica o ódio nas manifestações anti-racismo ou pró-aborto, anti-isto ou pró-aquilo.

Mas será possível falar em “cem denários” perante casos de pecados gravíssimos que vitimam tantos irmãos nossos, desde abusos sexuais, a tráfico humano, escravatura, abandono, fome, racismo e maus tratos de toda a espécie? Não haverá uma cláusula especial para as “grandes ofensas”? “Quem se vinga sofrerá a vingança do Senhor”, diz Ben-Sirá, sem fazer distinção entre pecados grandes e pequenos. E Jesus conclui a sua parábola, dizendo que quem não sabe perdoar ao irmão, será “entregue aos verdugos”.

Ouvi um dia uma expressão interessante: recusarmo-nos a perdoar alguém é como preparar uma bebida de veneno para matar o ofensor e, em vez disso, a bebermos nós. De facto, o rancor – se não se traduzir em atos – não tem como atingir o irmão, mas destrói-nos por dentro, roendo-nos as entranhas como um frasco de veneno, ao ponto de causar, a nível físico, úlceras no estômago e outros transtornos, e a nível psíquico, uma terrível falta de paz. Somos “entregues aos verdugos”, não por Deus, mas por nós próprios. É por isso que não há nada mais libertador que o perdão “de todo o coração”, que nos cura e nos restabelece, que nos permite ser, de novo, felizes.

Tudo é graça, o perdão que recebemos de Deus e a capacidade de perdoarmos os irmãos. Tanto o perdão recebido como o perdão oferecido nos curam e nos libertam: “Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades. Salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia.” Quando nos damos conta da maravilha que é vivermos imersos no dom de Deus, descobrimos a alegria da gratidão: “Bendiz, ó minha alma, o Senhor e não esqueças nenhum dos seus benefícios.” Suspensos da misericórdia divina, que Jesus nos alcançou na Cruz, descobrimos que nada mais importa, a não ser este amor avassalador, que nos submerge: “Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor.”

Hora da missa. É aqui, sobre este altar, que se mede “a distância da terra aos céus”, que “afasta de nós os nossos pecados”: a altura da Tua Cruz. Daqui a pouco, Jesus, irei pedir-Te que me perdoes, “assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.” Dá-me, Senhor, a graça de mergulhar, por inteiro, na Tua misericórdia, seguindo o conselho de Ben-Sirá: “pensa na aliança do Altíssimo e não repares nas ofensas que te fazem…” Ámen.

2 Comments

  1. ANA MARIA JORGE RIBEIRO ALVES

    Li com interesse.

  2. Habitualmente leio a tua reflexão antes da Missa (e antes de explorar a Palavra em família), mas desta vez não o fiz. Foi interessante ler depois de ter escutado a homilia na Missa, uma variante, mas, no fundo, no fundo, ambas as experiências me ajudam e enriquecem!

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