Em Caná da Galileia...


Em jeito de balanço

Ontem, como quase todos os dias desde 13 de março, levei o Daniel a visitar as ovelhinhas no final da rua. Se eu me atraso um pouco, é ele quem me puxa para o carrinho e me pede que o sente, pois não gosta de ficar sem o seu passeio matinal, não vão as ovelhas passar fome! E a verdade é que, ao vê-lo chegar, elas correm para o gradeamento e atropelam-se para receber as folhinhas e ervinhas que ele lhes estende.

E ontem, enquanto passeávamos, dei comigo a ter saudades antecipadas destes passeios matinais. Saudades da tranquilidade destes nossos dias, longe do vaivém casa-escola e casa-trabalho, longe das minhas muitas viagens diárias a levar e trazer filhos do basquetebol, da ginástica, da escola. Na verdade, no início de março eu estava próximo da exaustão, e o confinamento obrigou-me a parar. É um luxo e um conforto que deixam saudades, a mim que sei perfeitamente não ser chamada a este luxo e a este conforto…

“Universidade” em casa

Sinto-me um pouco egoísta, experimentando estas saudades, pois sei que os meus filhos sofreram, e sofrem, com a distância da escola, dos amigos, dos recreios, das brincadeiras no pátio, das competições, dos jogos, das aulas práticas na universidade, do Centro de Fé e Cultura, da vida que deixaram lá fora. Todos rezam por um retorno à “normalidade” em setembro, e eu rezo com eles.

“Aula-zoom” da Sara

E no entanto, nestes três meses, todos crescemos. Não é isso que Deus pretende, quando permite contratempos? Os meninos aprenderam a cuidar uns dos outros, a respeitar o trabalho dos pais e dos irmãos, e cresceram em delicadeza de trato e paciência, que isto de ter irmãos mais velhos e irmãos mais novos exige muita paciência…

Quando os quartos estão transformados em salas de aula e não se pode entrar…

Estes três meses foram dos mais dolorosos da minha vida espiritual. Eu gostava de dizer que aproveitei o confinamento para concluir vários projetos que tenho em mãos, ou para aprofundar a minha oração e leitura espiritual. Mas estaria a mentir. Vivi, desde o dia 13 de março, num tumulto interior enorme, procurando encontrar sentido no que me parecia um absurdo, e não conseguia pensar noutra coisa que não na ferida eclesial em carne viva. Até bem depois da Páscoa, passei por uma grande exaustão espiritual, as lágrimas sempre fáceis, uma revolta interior sempre a crescer. Que pacientes que foram os meus filhos e o Niall! Escrevi, escrevi muito neste site e noutros lugares, como sempre faço quando procuro encontrar sentido para as coisas. Como posso ter saudades desta luta tão dolorosa? Ah, a luz que brota das feridas abertas do Senhor!

A Sara com os seus bonecos…

Sou, talvez, demasiado transparente, e não tenho medo de me mostrar vulnerável, o que causou desconforto a muitos de vós. Recebi mensagens de ânimo, e mensagens enfurecidas. Houve quem me dissesse que não tinha o direito de gerar confusão na cabeça das pessoas. Porque não? Se Cristo veio trazer a espada, não havemos de a agarrar? O Niall costuma dizer que um dia, na minha campa, se escreverá a frase: “Teresa Power, a mulher que não era capaz de ser politicamente correta. Chegava a ser enervante.” Pobre Niall, fica sempre com o coração nas mãos quando me ponho a escrever. E no entanto, não escrevo uma linha que não tenha sido bem conversada entre nós.

coelhinho e gatinho, amizade improvável

Como Jacob – leram a catequese do Papa? – lutei com Deus e fiquei ferida, mas não desisti da luta enquanto Deus não me abençoou. Não tenciono esconder a ferida, que me faz coxear pela vida como fez a Jacob. Mas também não tenciono esconder a bênção, que me impele a dar tudo pelo Movimento que o Senhor nos chamou a fundar. Dou a minha vida, aliás, sem hesitação, se o Senhor precisar dela para salvar as famílias. Seria uma honra, e eu não me sinto agarrada a esta Terra, por muito que goste de por cá andar.

Comendo ameixas apanhadas na nossa árvore!

As Famílias de Caná não se tornaram virais durante o confinamento, nem o site aumentou o número de visualizações. Fui, por uns tempos, “persona non grata”. Escrevo muito, eu sei, escrevo artigos que levam mais de cinco minutos a ler (e bastante mais de cinco minutos a escrever), não dá para acompanhar. Sou de outro tempo, não gosto de fazer “zapping” pelas redes sociais, e quando leio alguma coisa, gosto que me leve tempo a ler. O que escrevi, escrito está.

As Famílias de Caná ainda não levantaram voo. Ainda deslizam no solo do aeroporto, as rodinhas bem assentes no chão.

E, no entanto, a resposta à grande crise que a Igreja está a atravessar passa por aqui. O vinho está a acabar, mas por intercessão da Mãe de Caná, já jorra, abundante, nas nossas Seis Bilhas.

“Que podemos fazer?” Perguntava-me uma mãe de Família de Caná num destes dias, confrontada com a sensação de impotência diante da porta – não da porta de madeira – ainda fechada da sua paróquia.

Que podemos fazer? Aconselhei-a a ler a nossa Carta Fundacional. Quando tenho dúvidas, quando eu mesma me deixo enrolar no tumulto que vivemos hoje, uso esta carta como uma bússola. Foi escrita para que não nos desviemos, nem para a direita, nem para a esquerda, do sonho de Deus para as nossas famílias.

“Praia” em casa…

Que podemos fazer? Quem procura um Movimento em Igreja para crescer nele, está talvez à procura de uma estrutura forte e de um exército bem armado, com muitas formações e muitos projetos. E se as Famílias de Caná não forem assim? (“Também vós quereis ir embora?”) E se a nossa vocação específica for simplesmente a de encontrarmos, todos os dias, em nossa casa, Tempo de Família e Tempo de Deus? E se a nossa missão for simplesmente a de nos envolvermos num apostolado humilde na nossa paróquia, da catequese aos CPM, ou a de nos envolvermos na associação de pais das escolas dos nossos filhos, ou a de formarmos um canal de evangelização na Internet, ou a de escrevermos um blogue católico? Há Famílias de Caná em todos estes apostolados.

Que podemos fazer? Estender ao Senhor as nossas Seis Bilhas, para que o milagre aconteça aqui e agora, em nossa casa primeiro. A pandemia dá-nos a bela lição do contágio: se não mantivermos distâncias, se não nos isolarmos, se nos misturarmos com os outros, iremos contagiar o mundo, família a família, paróquia a paróquia.

Neil Armstrong deu três passos na lua e concluiu: “Um pequeno passo para o homem, um passo gigante para a humanidade.” Talvez possamos dizer algo parecido: a simplicidade da nossa vida e do nosso apostolado familiares pode ser um pequeno passo sob o ponto de vista humano, mas é certamente um passo gigante do ponto de vista da eternidade.

Todas as manhãs, empurro o carrinho do Daniel até ao fim da rua, para vermos as ovelhinhas. Talvez estes passos sejam mais belos e mais divinos do que imagino…

 

 

 

 

 

 

 

12 Comments

  1. Andreia Ribeiro

    Teresa, muito obrigada por todas as reflexões que generosamente partilha aqui… Um bálsamo para o meu coração, fazendo-me pensar em assuntos que jamais sozinha iria conseguir “atingir”…

  2. Fiquei a pensar nesta frase: “Quem procura um Movimento em Igreja para crescer nele, está talvez à procura de uma estrutura forte e de um exército bem armado, com muitas formações e muitos projetos.” pelo simples motivo de não me identificar nada com ela. Mas acredito que assim seja com muitas pessoas. Há muitos anos que faço parte do caminho neocatecumenal e estou lá ainda porque preciso de escutar assiduamente a palavra, para me lembrar que Deus me ama, também por ter uma comunidade de irmãos onde posso partilhar o que me vai na alma.

    A Teresa fê-lo através do blogue e bem. Não concordo com todos os textos que escreveu, e até a julguei quando percebi que afinal quase sempre comungaram durante a quarentena e aqui em casa isso não aconteceu.

    Mas acho que são precisas pessoas como a Teresa para nos ajudar a refletir.

    A paz,
    Vera

    • Vera, em relação à comunhão, não penso que tenha sido uma surpresa para ninguém. Afinal, eu escrevi logo no primeiro artigo, uma hora depois da comunicação da CEP no dia 13 de março, que A iria mendigar junto do meu pároco e, inclusive, oferecer-me para A levar a outros, pois a única coisa que ficou suspensa foi a missa, não a comunhão. E voltei a afirmá-lo em comentários, etc. Não me passou nunca pela cabeça ficar sem comungar. Tive a felicidade de o meu pároco nunca A recusar, o que não me obrigou a dar voltas maiores. Tê-las-ia dado, sobretudo agora que descobri que, em paróquias mesmo aqui ao lado, ainda se fez mais do que isso, e houve famílias a comungar diariamente e a fazer adoração ao Santíssimo em suas próprias casas. Deus faz-nos criativos! A paz também para si, Teresa

  3. Teresa, eu também gosto quando os textos demoram a ler (se gosto de os ler, claro, que é o que acontece aqui)! As minhas visitas ao site mantiveram-se, porque continuei a ler tudo (às vezes o ensinamento mensal é lido no fim do mês, enfim), embora nem sempre logo, logo.
    Não concordo com o Niall. Acho que a frase na tua campa poderia dizer: “Teresa Power, a mulher que fazia por ser catolicamente correta. Chegava a ser inspirador.” 😊

  4. Tânia Côrte-Real

    Cara Teresa,
    nem sempre concordo com o que afirma nos seus textos, mas são excelentes porque me fazem pensar, questionar, duvidar. A partir deles tenho aprendido muito e penso que como família temos melhorado graças às reflexões que faço. A frase que a leitora anterior mencionou também me fez pensar, Jesus também causou a desilusão em alguns que estavam a espera de um rei poderoso e aniquilador.
    Um grande bem haja e continue sempre a escrever,
    aguardo o próximo texto 😊

  5. Vanessa Almeida

    Abençoam-me muito suas palavras aqui no Brasil! Por favor não as deixe de escrever. Deus abençoe sua família.

  6. Querida Teresa! Eu adoro as suas reflexões! E adoro justamente por serem politicamente incorretas, por abanarem a estrutura, por deixarem a cabeça confusa… Afinal, o nosso Jesus era perito em deixar as cabeças confusas… Para descobrirmos o caminho!
    Estes tempos foram difíceis para todos. Para nós também foram muito difíceis, e o aprofundamento da fé não foi o que gostaria… Mas sei, hoje mais que nunca, a Verdade que emerge!
    E deixe-me dizer-lhe que adorei a reflexão sobre a escola que fez no outro post, muito verdadeira e muito profunda… E certamente, geradora de discórdias!

  7. Teresa,
    Há dias em que concordo com tudo o que diz, outros nem por isso. Mas, como já disse noutros posts em que comentei, quer concorde quer discorde, as suas reflexões fazem-me sempre meditar nos meus valores, prioridades, na minha vivência da fé – e isso para mim é a verdadeira beleza do site das Familias de Caná 🙂 Nunca deixe de escrever, seja um texto de 3 minutos ou de 30. Quando as palavras têem este dom de mexer tanto connosco, acredite que terá sempre quem a leia.
    Um abraço para todos (o seu Daniel está enorme e um querubim autêntico!)
    Ana

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