Em Caná da Galileia...


Igreja Doméstica, em dia de Grande Fome

Quinta-feira Santa 2020. Jesus deseja ardentemente celebrar a Páscoa na minha casa, com a minha família. Mas hoje, Ele está só. Muito, muito só.

Logo pela manhã, o João Miranda Santos recordava-nos no seu artigo que este dia requer proximidade física, pois assim pedira Jesus aos seus amigos:

A minha alma está numa tristeza de morte. Ficai aqui e vigiai comigo. (Mt 26, 38)

Assim, juntámos a família e rumámos ao Santuário, que graças a Deus, nunca fechou as suas portas. Como foi bom! Rezámos em silêncio e em voz alta, cantámos e tocámos guitarra, ajoelhámos, fizemos silêncio, rezámos o Terço da Divina Misericórdia e fizemos a nossa comunhão espiritual, ali bem pertinho do sacrário.

Foi a melhor coisa que fizemos o dia inteiro. Adorar “Jesus Escondido”, com a proximidade física de quem partilha o mesmo espaço, é uma enorme bênção, num dia em que a maior de todas nos está vedada: a participação na Santa Missa e a Comunhão do Corpo de Jesus, entregue por nós.

Depois do almoço, iniciámos os preparativos para a grande festa desta noite. E quando aqui em casa se prepara uma Ceia Bíblica, o empenho é total. Ora espreitem:

Até o Daniel queria ajudar. O Daniel, aliás, passa a maior parte do seu tempo livre – e olhem que o tem às mãos cheias! – na cozinha, entre tachos e panelas. E quem deles precisar, que se bata com ele!

Ao fim da tarde, e com os meninos já a rebentar de impaciência, começámos a festa.

Reunimo-nos à porta da sala, onde um letreiro nos indicava:

Junto ao nosso Cantinho de Oração, cantámos, pedimos perdão e rezámos o Senhor, tende piedade. Depois, com sinos e palmas, cantámos o Glória. É um grande dia este, para a Igreja! Lemos a Primeira Leitura, que nos narrou a primeira Páscoa, antes da fuga do Egito. Depois, a Clarinha cantou o salmo, como faria se tivéssemos tido Missa. Lemos a Segunda Leitura, que nos narrou a instituição da Eucaristia.

E então, a nossa celebração passou do Cantinho de Oração para a mesa, belissimamente posta:

Enquanto comíamos, íamos partilhando as citações e adivinhando a que história bíblica pertenciam, todos ao mesmo tempo, em conversa simples e franca. O jantar estava delicioso, mas havia um sabor amargo, que não vinha das ervas: vinha da solidão da avó, que não podia celebrar connosco, pois vive noutro concelho de onde, por agora, não pode sair. Por vídeo chamada, conversámos e brincámos um bocadinho, procurando amenizar a dor da sua solidão, também ela, a solidão de Jesus.

Passámos depois, novamente, para o Canto de Oração. Faltava ler o Evangelho de S. João, narrando o Lava-Pés. Que contraste, entre a solenidade de Jesus, que “sabia que vinha de Deus”, e o gesto tão humano e humilhante que vai fazer! Também nós decidimos experimentar. A Sara tinha preparado papéis com os nossos nomes, para tirarmos à sorte quem lavava os pés a quem, e o resultado foi divertido, cheio de gargalhadas e, claro, de uma humana estranheza:

Continuámos depois para a nossa oração de todos os dias: a partilha da ação de graças, as súplicas, a Consagração, o Shemá – hoje, em especial, com ênfase no amor até ao fim de Jesus – e, claro, o Terço.

No centro das nossas orações de hoje, estiveram carinhosamente os sacerdotes, o nosso pároco, o nosso bispo, o Santo Padre. Hoje é o dia em que Jesus inventou o sacerdócio. Que dom tão grande! Rezei, em segredo, para que o Senhor me conceda um filho sacerdote. Será o Daniel?

Ainda de joelhos, no final do Terço, peguei de novo no Evangelho e, a partir de S. Mateus, o evangelista deste ano, li a passagem que narra a saída de Jesus e dos discípulos para o Getsemani. Em silêncio, acompanhámos o Senhor. Depois, como na igreja, num gesto simbólico e triste, despimos o nosso Cantinho de Oração de todos os panos e toda a cor. Retirámos a imagem de Maria e do Menino e Jesus ficou só, na Cruz. Cruz que amanhã estará no centro do nosso dia e da nossa vida.

Deitei os mais novos e regressei à sala. O dia fora magnífico. A minha família estivera à altura, pensei. Mas todos eles, do maior ao menor, comentaram a falta infinita que tinham sentido da celebração comunitária, na igreja. Faltou a Missa. Uma falta que se fez sentir com uma agudeza impressionante. Um vazio que ocupou um espaço enorme. Um silêncio que gritou com uma força poderosa. Faltou a Missa.

E sentimos a fome, a grande fome de 2020. E sofremos. Como Jesus, também a nossa alma ficou numa tristeza de morte, mesmo no meio da alegria imensa, infinita também, que experimentamos com a presença uns dos outros e a festa de que somos capazes, aqui em casa…

 

 

 

 

 

8 Comments

  1. Muito bonito! Gostei muito do vosso testemunho! Cá em casa também fizemos as leituras, o pão ázimo com os pequenos, um jantar diferente e um lava pés trapalhão, que eu ainda consegui fotografar, com a máquina em equilíbrio no joelho, enquanto o Tiago mamava!

  2. Maria Isabel Henriques

    Ó que benção uma família assim!…. Como eu desejava tanto também poder viver assim este dia! Que O Senhor Tenha Misericórdia da minha miséria…e Abençoe a pobre vivência deste dia em minha casa…
    Abençoados Sejam!

  3. Vera Catarino

    Obrigada pelas vossas partilhas que têm aprofundado a vivência litúrgica na minha família. Cá por casa também tentamos recriar um jantar de inspiração bíblica. Mesa posta no chão, com pão ázimo, ervas amargas, tâmaras e figos secos, lemos o evangelho e rezamos o Shemá. Por fim procedemos ao Lava Pés familiar que foi vivido muito intensamente por todos, principalmente pelos mais novos e terminamos a noite com o terço.

  4. Que celebração bonita!

    Pode partilhar connosco a lista de alimentos preparados?

    Muito obrigada e uma Santa Páscoa!

    • Andreia, fizemos uma ceia muito simples: vitela, porque o Pai do Filho Pródigo mandou preparar um vitelo gordo; uma salada com ervas aromáticas variada, a lembrar as ervas amargas da Páscoa judaica; broa de milho e outro pão fatiado, segundo a Palavra tão antiga de Abraão a Sara, pedindo-lhe que preparasse pão para servir aos Três Misteriosos Visitantes; “Húmus”, uma pasta típica de Israel, que compramos feito; e outras pastas para barrar o pão; por fim, pão ázimo. Depois de experimentarmos várias receitas, venceu esta: 250g de farinha sem fermento (claro!); 125 ml de água tépida; 2 colheres de sopa de azeite; 1 colher de café de sal fino. Misturar e amassar, dividir em seis pedaços e fazer círculos; aquecer a frigideira e cozinhar de ambos os lados, como panquecas. Bom apetite!

  5. Que magnífica ceia, e a paz que se sente ao ver as vossas fotos e testemunhos. Aqui em casa algo mais simples e meio tosco em relação ao vosso,baseamos nos no triduo pascal da liturgia pastoral ,também cá em casa nunca tínhamos comemorado em família nada assim,ainda nos tamos adaptar e hoje continuamos com adoração da cruz as 15h e via sacra que iremos ver a noite as 20h na RTP2.amanhã vamos fazer a vigília pascal e tentar rezar em família .calmamente isto vai lá,duma coisa eu aprendi neste tempo,cada família tem o seu tempo e maneira de fazer as coisas ao seu ritmo e seu tempo.axo que isso e o que fará Deus feliz.cada família caminhar sempre uns mais avançados outros menos mas darmos a maos para não nos perdermos do que e o mais importante.abracos a todos

    • É isso mesmo, Ana! Cada família ao seu ritmo, seguindo as suas próprias tradições, as suas orações. Por isso, nós não somos adeptos, nas FC, de guiões de oração, em que nos digam com que palavras a nossa família deverá falar a Jesus, e por isso, aqui nunca os oferecemos. Antes desafiamos cada família a rezar na simplicidade do nosso lar, deixando para os momentos litúrgicos, isso sim, as belíssimas orações litúrgicas, de que neste momento estamos separados! Um abraço, neste dia da Paixão do Senhor!

  6. Aqui em casa também cebramos em família, celebrações mais simples, percebi com os anos que quanto mais eu queria fazer… Menos conseguia fazer. Está a ser um Triduo diferente… Pequenas igrejas domésticas unidas, de formas tão diferentes em locais tão diferentes e com um mesmo objectivo. Fazer Memória.
    (Estou a gostar muito de ler os comentários aqui no site!)
    Que Deus nos abençoe!

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