Em Caná da Galileia...


Infeção urgente

Tem treze anos. É uma menina simpática e bonita. Faz parte de uma das minhas turmas de oitavo ano. Há uns tempos, numa aula sobre “hobbies” e formas de ocupar os tempos livres em casa, ela disse no meio da turma, alto e bom som:

“Na minha casa, eu geralmente limito-me a três frases: Bom dia! Boa noite! O que é o comer?”

Pergunto-me se agora, nesta quarentena a que o coronavírus nos forçou, já dirá mais alguma frase. Será que agora já ri em conjunto com os pais? Partilharão o mesmo sentido de humor? Será que se olham nos olhos e, apesar do medo, se abraçam?

Talvez não. Talvez estejam a aproveitar a quarentena para manter o facebook bem atualizado. Talvez estejam os três – pais e filha – na mesma sala, mas cada um a construir comunidade com pessoas diferentes, partilhando online opiniões, gostos, ideias, projetos, sonhos e até orações, que não ousam partilhar na intimidade familiar.

Num destes dias, a Clarinha procurava encontrar, com uma amiga (por videochamada) o momento ideal para realizarem determinado trabalho para a universidade (que continua de vento em popa em aulas online). A amiga, que não é cristã, propôs a semana santa para conclusão do trabalho. A Clarinha recusou: “Nessa semana, cá em casa iremos estar ocupadíssimos, imagino eu. Estamos sempre e este ano, de certeza não será diferente, mesmo sem irmos à igreja”. A amiga suspirou: “Deve ser tão bom, fazer assim coisas em família, ter tradições e rituais! Eu não tenho nada disso…”

O mundo esperou tanto tempo por esta oportunidade. Tanto tempo!

Mas agora, que a temos… Ainda iremos a tempo?

tentando jogar às cartas – com o Daniel

Ainda iremos a tempo de interromper as gargalhadas que o filho de dezoito anos dá online para lhe sugerir, vem jogar às cartas connosco?

Ainda iremos a tempo de desligar o televisor da filha de dez anos e convidar, anda, vamos jogar dominó?

Ainda iremos a tempo de desafiar os filhos adolescentes para organizarem sozinhos um jantar bíblico, com citações apropriadas ao lado de cada prato?

Ainda iremos a tempo de sentar o mais pequenino no colo para lhe contar uma história?

Ainda iremos a tempo de vencer os respeitos humanos e a estranheza natural de um lava-pés familiar?

Ainda iremos a tempo de acender uns castiçais bonitos à hora do jantar, desligar a televisão, silenciar os telemóveis, deixar o covid-19 do outro lado das telas e dizer, vamos fazer festa porque somos uma família?

Ainda iremos a tempo de inventar tradições e rituais que nunca tivemos, que nunca sonhámos, que nunca experimentámos, mas que irão pegar, e irão passar para a geração dos nossos filhos e dos nossos netos?

Ainda iremos a tempo de partilhar a oração de louvor e súplica em voz alta, no meio da sala de estar, exprimindo-nos com a naturalidade com que o fazemos nas orações em cadeia por whatsapp?

Ainda iremos a tempo de recuperar o humor e as brincadeiras entre marido e mulher?

Ainda iremos a tempo, marido e mulher, de conversarmos juntos e, quem sabe, rezarmos juntos com a Bíblia aberta?

Ainda iremos a tempo de escutar os silêncios entre as palavras, de estreitar os espaços vazios entre as pessoas?

Segundo dizem os que sabem, este vírus veio para ficar mais algum tempo. O suficiente, talvez. Tempo, nesta altura, é o que não nos falta. Não era essa a desculpa que sempre dávamos?…

Tenho sentido tanta resistência, nos comentários ou na falta deles, da parte de muita gente que anda por aqui ou que me escreve para o mail, em agarrar a oportunidade para fortalecer as suas Igrejas Domésticas, que me pergunto…

Iremos deixar que o vírus passe por nós sem nos infetar? …

Abraão ergueu os olhos e viu três homens de pé diante dele. Imediatamente correu da entrada da tenda ao seu encontro, prostrou-se por terra e disse: “Meu Senhor, se mereci o teu favor, peço-te que não passes adiante sem parar na casa do teu servo.” (Gn 18, 2-3)

 

 

5 Comments

  1. “Uiii Teresa…” – é a única coisa que me surge dizer!
    Gosto muito de ler as iniciativas e propostas para esta semana santa e para a Pascoa mas por cá as coisas serão beeeeem diferentes disso tudo! Espero poder ler testemunhos bonitos de muitas famílias que “ainda vão a tempo” disso que a Teresa desafia! E espero, igualmente, um dia poder partilhar…

  2. Claro que vamos a tempo! Custa é um bocadinho… Quem faz ou tentou fazer a experiência de, pelo menos uma vez por dia juntar toda a gente e fazer uma oração familiar, sabe que se contam pelos dedos as que correram maravilhosamente bem, tudo concentrado, de cara alegre, em coro. A tentação é (a minha foi em tempos) de: ou fazemos tudo bem ou não vale a pena… Rezo sozinha, nas calmas. Perdoem-me todos os que não concordam com a minha opinião, mas família é isto mesmo, um conjunto de pessoas diferentes, com idades e problemas diferentes, se cada um der o seu melhor não será do agrado de Deus?
    Começar não é fácil. Eu comecei sozinha num sítio à vista, depois aos poucos as filhas juntaram-se, depois o marido. Sei que tirar toda a gente do conforto é arriscado e aborrecido, mas depois a recompensa é infinitamente maior.
    Uns dias corre melhor, outros pior…
    Deixo uma sugestão muito usada noutros países: um único dia (sábado à noite ou domingo) deixar os filhos escolherem a comida, o que vão fazer ao serão, um filme, um jogo, o que eles quiserem desde que todos estejam presentes (ou o maior número) mesmo que detestemos a atividade, também temos de colaborar, certo? Aos poucos o que era aborrecido torna-se aguardado, mais tarde podemos introduzir outras ideias, conversas…
    E fico por aqui dizendo que as nossas famílias precisam de união ou não sobreviverão…

  3. Tânia Côrte-Real

    Vamos sempre a tempo! Cá por casa somos cinco, todos com muitas atividades e uma vida muito agitada, até agora, mas tentámos sempre ter momentos em família. Sem eles não conseguiríamos avançar para mais uma semana de trabalho.
    A oração familiar diária em família só começou no último advento, em que criámos uma caixinha do advento que todos os dias abrigamos e fazíamos a leitura diária. Tínhamos um guia que ajudava na compreensão da leitura e a partir dele refletiamos. Foi verdadeiramente revelador, a partir da palavra de Deus os miúdos falavam do que lhes tinha acontecido durante o dia, partilhavam imenso, partilhávamos todos. Penso que todo o ambiente ajudava, as velas, a penumbra e depois as palavras que nos falavam ao coração. Depois do advento eu e o meu marido reunimos os miúdos e dissemos que gostaríamos de continuar com a oração familiar diária e queríamos saber o que eles achavam. Surpreendentemente o meu filho mais velho, com quinze anos, foi o primeiro a dizer que achava uma boa ideia. Não é que seja sempre perfeito, não é, mas não desistimos😊.
    Um grande bem haja Teresa pelas suas palavras, que me fazem sempre refletir bastante.

    • Obrigada, Tânia! Quem, na verdade, ousa experimentar a oração familiar diária, chega quase sempre à mesma conclusão: revelador, fonte de união familiar, fonte de conversas imperdíveis… Um hábito só se torna hábito depois de se manter por pelo menos um mês, não é o que se diz? Que todas as famílias aprendam com o seu exemplo! Bjs!

  4. antónio assunção

    Papa Francisco Audiência em 26-02-2020, 1º dia da Quaresma
    “A Quaresma é o momento propício para dar espaço à Palavra de Deus.
    [E hoje o Evangelho de Jo 8, “Se alguém guardar a minha palavra, nunca verá a morte” mesmo em tempo de vírus… ou de outro tipo de morte física]
    É o tempo para desligar a televisão e abrir a Bíblia. É o tempo para nos desligarmos do telemóvel e para nos ligarmos ao Evangelho.
    [Também senti essa necessidade nestas dias]
    Quando eu era criança não havia televisão, mas tínhamos o hábito de não ouvir o rádio. A Quaresma é deserto, é tempo para renunciar, para nos desligarmos do telemóvel e para nos ligarmos ao Evangelho. É o tempo para renunciar a palavras inúteis, conversas, boatos, tagarelices, e falar e tratar o Senhor por “tu”. É o tempo para se dedicar a uma saudável ecologia do coração, para fazer limpeza. Vivemos num ambiente poluído por demasiada violência verbal, por tantas palavras ofensivas e nocivas, que a rede amplifica. Hoje insulta-se como se se dissesse: “Bom dia”.
    [É um desafio para quem agora está em casa “em clausura” mas em família e poderá treinar-se no hábito de usar as palavras que o Papa Francisco aponta para a vida a ser vivida SEMPRE como “irmãos na mesma barca”: “Por favor” “Desculpa” “Obrigado”
    Que profecia!… Que atualidade!… para uma santa caminhada para a Páscoa com Jesus Abandonado e Ressuscitado]

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