Em Caná da Galileia...


O ouriço-cacheiro, os comboios e Nós

Noite estrelada, luminosa, fresca e bela, na quinta do santuário. O Canto de Caná no centro, as tendas a toda a volta. Já tudo está em silêncio, depois de muitas correrias com lanternas, muitos jogos às escondidas, muitos risos e muita conversa – porque não há nada melhor num acampamento que as brincadeiras à noite quando se tem oito, dez, doze anos… Mas agora, já todos dormem.

Todos, não: o Daniel recusa-se fechar os olhos. Parece querer ver as estrelas lá no céu, e a noite à sua volta é grande demais para o conter, tão ao contrário desta tenda pequenina onde os pais teimam em o enfiar. Tudo lhe é estranho, e o Daniel desconfia deste silêncio salpicado de grilos e luzes, que a passagem pontual dos comboios vai interrompendo. É preciso resistir, pensa ele, do alto dos seus sete meses.

Com o Daniel nos braços, passeio ao lado do Niall, por entre as tendas, sob as estrelas. Na torre do santuário, os ponteiros do relógio avançam devagar. Já passa muito da meia-noite… Irá o Daniel adormecer?

Enquanto passeamos, o Niall e eu conversamos. Como é romântico, conversar à luz das estrelas! Em cada uma das tendas à nossa volta, há uma família que está aqui porque um dia, há precisamente vinte e três anos, o Niall e eu dissemos Sim ao Senhor. Pela segunda vez, passamos o nosso aniversário de matrimónio no Acampamento de Caná. Se nos fosse dado escolher, lembrar-nos-íamos de lugar mais perfeito para celebrar?

Temos tempo. O Daniel está acordado, mas assim nos meus braços, já não chora. O Niall e eu podemos conversar sem pressa, como gostamos de fazer todos os dias, quando os meninos dormem. Com sete filhos vivos e depois de vinte e três anos de casamento, estamos bem acostumados a aproveitar cada momento juntos, sem ilusões. Sabemos que talvez não tenhamos mais do que dez minutos de cada vez, mas que importa? Às vezes, são dez minutos depois do almoço ou jantar, quando os meninos levam o Daniel para a sala e por lá se entretêm todos, permitindo-nos assim tomar café sozinhos. Outras vezes, são dez minutos com o Daniel nos braços, passeando à volta da casa, à beira-mar, ou à luz das estrelas – como agora.

Com muita frequência, leio artigos sobre vida familiar que sublinham a prioridade do amor conjugal sobre o amor parental. Dizem eles que, se o casal está bem, os filhos também o estarão, e portanto, o cuidado com a sua educação é secundário relativamente ao bem-estar conjugal. Bebendo destas teorias, conheço cada vez mais casais cristãos que frequentam muitos retiros individuais ou conjugais, que partem em peregrinações frequentes e longas, ou vão de férias a dois, e não têm qualquer problema em deixar os filhos, não uma, não duas, mas muitas e muitas vezes, entregues aos avós ou outros familiares, para que o casal possa “estar bem”, visto o resto ser secundário. Já repararam como até nos convites de casamento, nestes nossos dias, se convida apenas o casal, pedindo o favor de não levarem os filhos à Boda (caríssima, claro)? E já repararam como os casais vão aceitando isto sem refilar, como se os filhos fossem um à-parte que se pode descartar quando convém?

Preocupa-me esta visão da família. O amor pelo esposo e o amor pelos filhos não são concorrentes, nem precisam de ser hierarquizados. O amor é só um, e tal como em Deus, é trinitário. E tem de ser trinitário mesmo quando, por permissão de Deus, a família não tem filhos. Nesse caso, há que se empenhar em conjunto em alguma missão eclesial, porque o amor é Deus, e Deus é Trindade. Nós, Jesus! Diz-nos a primeira “bilha de Caná”, recordando-nos que a união conjugal, a união familiar, a união em Igreja e a união com Deus são uma e a mesma coisa.

Um retiro conjugal ou individual, deixando os filhos entregues a familiares, é um luxo, não uma necessidade. Há um tempo para tudo, diz a Escritura (Eclesiastes 3), e lembram-nos os comboios, que nem de noite deixam de passar por detrás do Canto de Caná.

Descrevendo esta fase atarefada da sua vida de mãe, santa Zélia Martin escreveu:

Logo que tivemos filhos, as nossas ideias mudaram um pouco. Só vivíamos para eles, constituíam eles toda a nossa felicidade e nunca tivemos outra. Nada nos custava já: a vida não nos parecia difícil. Para mim eram eles a maior das compensações e por isso desejava ter muitos, a fim de os criar para o Céu. (Carta a Paulina)

Um dia – muito mais cedo do que desejaremos – os filhos partirão de casa, cada um no seu “comboio”, descendo em estações que não conhecemos. Um dia – muito mais cedo do que desejaremos – outros cristãos assumirão as nossas responsabilidades paroquiais. Então o tempo voltará, o tempo só nosso, o tempo de retiros a dois, das peregrinações, dos passeios à luz das estrelas…

Como agora?

Rimo-nos, felizes. De repente, por entre os arbustos, o Niall e eu damo-nos conta de uma estranha agitação. Será um cão? Alguma criança ainda a brincar às escondidas? Aproximamo-nos, a tempo de vermos dois ouriços-cacheiros a fugir. Uau! Um deles, com a sua sabedoria natural, finge-se de morto, deixando-se assim contemplar por largos minutos. Para o Niall e para mim, estas visões inesperadas da natureza são sempre uma ocasião de deslumbramento. Estamos transbordantes de gratidão.

Enquanto nos distraímos com o ouriço, o Daniel adormece. Com jeitinho, deito-o entre o Niall e eu, na nossa tenda baixinha, e também nós adormecemos rapidamente. Algures noutras tendas – não sabemos bem quais, tantas as trocas entre as crianças – dormem os nossos outros filhos.

Os comboios continuarão a passar, assustando a noite e abalando as nossas ilusões, para que não nos esqueçamos de que há um tempo para tudo, e que este tempo não volta, e que este tempo passa mais depressa do que pensamos.  Amanhã iremos acordar ao som da chuva suave e com cheiro a terra molhada, esse cheiro primeiro da Criação. Será um canto novo, o das gotas de chuva sobre a tenda, festejando o nosso aniversário com promessas de fecundidade.

 

 

 

One Comment

  1. “A habituação seduz-nos e diz-nos que não tem sentido procurar mudar as coisas, que nada podemos fazer perante tal situação, que sempre foi assim e todavia sobrevivemos. Pela habituação, já não enfrentamos o mal e permitimos que as coisas «continuem como estão» ou como alguns decidiram que estejam. Deixemos então que o Senhor venha despertar-nos, dar-nos um abanão na nossa sonolência, libertar-nos da inércia. Desafiemos a habituação, abramos bem os olhos, os ouvidos e sobretudo o coração, para nos deixarmos mover pelo que acontece ao nosso redor e pelo clamor da Palavra viva e eficaz do Ressuscitado. (…) Peçamos ao Senhor a graça de não hesitar quando o Espírito nos exige que demos um passo em frente” (Papa Francisco)

    Obrigada Teresa! 🙂

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