Em Caná da Galileia...


Os insensatos Apóstolos

Estamos a chegar ao fim da leitura dos Atos dos Apóstolos. Acompanhámos os Apóstolos durante cinquenta dias, e cá em casa, o entusiasmo foi grande.

“Como é que eles cantavam depois de levarem vergastadas?”

“E Paulo está feliz por ir morrer, como é possível?!”

“Que cómico devia ser! Os fariseus desesperados e sérios, e os Apóstolos a saltar de alegria por sofrerem em nome de Jesus!”

A insensatez dos Apóstolos contrasta estranhamente com a sensatez dos judeus e dos romanos. Por que raio é que os Apóstolos não procuravam os aplausos do mundo? É curioso como não leio na minha Bíblia frases do tipo:

“A Igreja sai do confinamento com uma imagem de bom senso e senso comum.”

“Recomeçaremos com muita cautela e muito cuidado.”

“Acima de tudo, seremos cautelosos.”

Alertando-nos para os perigos da covid-19, o senhor cardeal patriarca dizia que estamos perante “um vírus astucioso, que aproveitará qualquer descuido da nossa parte” (aqui) O senhor cardeal patriarca tem toda a razão. De facto, precisamos de cuidado. Mas a palavra astúcia é demasiado bíblica, demasiado relacionada com Satanás (cf. 2Cor 11, 3), para que a usemos assim. Estaremos, sem nos darmos conta, a personificar o coronavírus – que nem sequer é um ser vivo – ao ponto de lhe atribuirmos características de Satanás? E estaremos a deificar a saúde, ao ponto de a considerarmos o Supremo Bem?

O Papa Francisco tem dito para sermos cuidadosos no desconfinamento. Mas também foi o Papa que alertou para uma espécie de cuidado excessivo que corre o risco de se tornar muito pouco cristão. Fê-lo logo no início do confinamento:

Rezemos ao Senhor também pelos nossos sacerdotes para que tenham a coragem de sair e ir ao encontro dos doentes, levando a força da Palavra de Deus e a Eucaristia, e de acompanhar os profissionais de saúde, os voluntários, nesse trabalho que estão fazendo. (9-3-20)

E tem-no vindo a fazer a propósito, precisamente, dos Atos dos Apóstolos, nas homilias diárias:

Que o Senhor nos ajude sempre a ser corajosos: isso não significa imprudentes, a coragem cristã é sempre prudente, mas é coragem. (…) É preciso retomar a franqueza: se não vem, não és um bom cristão. Se para explicar a tua posição, escorregas nas ideologias, falta-te aquele estilo cristão, a liberdade de falar, de dizer tudo. A coragem. Os fariseus procuraram o caminho da diplomacia, o caminho da imposição do acordo (18-4-20)

A Igreja não segue “o caminho da diplomacia”, alerta o Papa. A Igreja não é um sindicato.

A coragem cristã, em nome da caridade, pressupõe todos os cuidados necessários para que as igrejas sejam seguras, “à prova de covid”. Não iremos, assim, causar problemas farisaicos, dificultando a vida aos sacerdotes, espiritualmente extenuados, com as nossas exigências e intransigências ritualísticas como receber a comunhão na boca, ou outras, sem qualquer interesse de debate neste momento (o senhor cardeal D. António Marto falou deste assunto aqui).

Mas a coragem cristã, e também em nome da caridade, não permite que se mandem embora das igrejas os que chegam sem marcação; que se convide a sair das igrejas (através das “equipas de acolhimento”) os que tossem ou espirram, começando por se aconselhar quem tosse ou espirra, nesta época dos pólen, a não ir à missa (está aqui, se quiserem confirmar, pois sei que é difícil acreditar); etc.

Até hoje, nunca vi demasiada exigência – às vezes, nem suficiente – em relação aos gestos orantes dos fiéis, que fazem genuflexões atabalhoadas, que têm dificuldade em fazer corretamente o sinal da cruz, que comungam na boca com as mãos nos bolsos, ou comungam na mão sem a devida reverência. Até hoje, graças a Deus, nunca vi ninguém ser convidado a sair da igreja ou impedido de nela entrar por ser preto ou branco, rico ou pobre, são ou doente, alto ou baixo (ia acrescentar: adulto ou criança, mas isso, infelizmente, já vi).

Merecerá a saúde maior intransigência da nossa parte que Nosso Senhor sacramentado? Se não nos inquietamos com o facto do irmão ao nosso lado não se saber benzer, iremos inquietar-nos se ele, distraidamente, nos oferecer o sinal da paz ou tossir debaixo da máscara? Se não permitimos que expulsem da igreja os nossos filhos irrequietos (não permitam, por favor), iremos permitir que expulsem um irmão com rinite alérgica? O verdadeiro bom senso, creio, prevalecerá, e pouco a pouco, tudo ficará bem, como diz o novo ditado.

Um grande, grande obrigado aos muitos sacerdotes que, nestes tempos difíceis, mantêm uma atitude de verdadeira sensatez, equilibrando as exigências sanitárias e as exigências espirituais, enquanto lidam com todo o tipo de fiéis, nem todos compreensivos. Tenho tido o enorme privilégio de conhecer alguns:

Um grande obrigado ao meu pároco, padre José Fernandes, por nunca nos ter recusado o Pão da Vida, que o Niall, fielmente, domingo após domingo, ia buscar ao santuário para com Ele alimentar a família, em casa (distribuir a sagrada comunhão nunca esteve proibido). Nunca passámos fome, e que magnífica adoração do Santíssimo fazíamos aqui, antes de comungarmos!

Um grande obrigado ao padre Rodolfo e ao padre Torrão, párocos de paróquias vizinhas que, a partir de 10 de maio (que nós soubéssemos), celebraram a Eucaristia de porta aberta (com conhecimento dos seus bispos), embora com pouquíssima gente, e nos permitiram a nós, uma família numerosa, participar sem qualquer problema e, por fim, confessarmo-nos.

Estamos todos ansiosos por amanhã, este amanhã que começa hoje à tarde, este Pentecostes em que retomamos a Eucaristia. Mas não é, senhor cardeal, para nos reencontrarmos, para revermos os paroquianos e o nosso pároco, pois já todos nos reencontrámos por aí, nos parques, nas praias, nas ruas e nos cafés. É sim para reencontrarmos o Senhor Eucarístico e participarmos, de corpo e alma, no sacrifício de Jesus, o Bom Pastor que, na Cruz, deu a vida por nós – insensatamente.

E voltemos aos Atos… Ainda se lembram, espero eu, do Ensinamento Mensal, que deve ser fonte de criatividade em todas as Famílias de Caná. Que versículo bíblico seremos capazes de acrescentar ao nome da nossa família? Aguardo as vossas partilhas! Que elas sejam tão corajosas e tão pouco sensatas como as dos primeiros cristãos…

 

 

 

One Comment

  1. Boa noite!
    Foi muito bom voltar à Missa, apesar de todos os constrangimentos!
    Aqui na minha “pequena” paróquia não foi necessário mandar ninguém embora por falta de lugar… porque até quem chegou 10min atrasada (sim Teresa eu sei que é mau, mas foi o preço a pagar para conseguir levar as minhas filhas comigo!) teve lugar para se sentar… a Francisca de 10 anos era a criança mais nova… deixa-me triste mas já era de esperar…
    Hoje ouvi e senti cada palavra, cada oração pronunciada pelo meu pároco como se fosse a primeira vez que as ouvia e com uma lágrima de emoção. Obrigada Meu Deus pela Santa Missa!
    Uma boa semana para todos, esta que começou da melhor forma possível!

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