A Semana da Vida apanha-me sempre num turbilhão de emoções e pensamentos. É que o mês de maio, das flores, da mãe, da ressurreição, da primavera, da vida – o mês de maio, na minha casa, é o mês da morte. Porque foi no dia 16 de maio que o meu pai partiu para Casa, há 28 anos atrás. E foi no dia 19 de maio que o meu filho Tomás partiu também para Casa, há 13 anos atrás.
Cada um dos meus filhos tem uma caixa de cartão desde o dia em que nasceu, para onde vou lançando, durante a sua infância, todas as suas pequenas recordações: as ecografias, a fita com o nome, recebida na maternidade, o primeiro caracol de cabelo cortado, os dentes de leite, as fotografias da escola, as recordações de batismo e primeira comunhão, os postais de aniversário, alguns desenhos do infantário, etc. Quando crescerem e saírem de casa, cada um deles levará a sua caixinha, e fará com ela o que bem entender, incluindo deitá-la no lixo. Mas a alegria e a emoção com que os vejo, tantas e tantas vezes, abrir a sua caixa e, no chão, espalhar o seu conteúdo e conversar sobre ele, faz-me acreditar que não será esse o seu destino!
Há apenas uma caixa (espero eu) que nunca sairá de casa: a do Tomás. De vez em quando, abro-a e demoro o pensamento em cada objeto. Um deles, em particular, absorve a minha atenção: um par de sapatos pequeninos. Gosto de os acariciar e não consigo deixar de sorrir diante deles.
Cá em casa, os meninos andam quase sempre descalços, verão ou inverno. Não foi assim com o Tomás: a avó foi com ele comprar o primeiro par de sapatos, teria o Tomás dez meses. E desde o primeiro instante em que os calçou, ainda na sapataria, o Tomás sentiu-se a rebentar de orgulho. Feliz, mostrava o pezinho calçado a toda a gente, e em casa esforçava-se por se equilibrar sobre eles, na sua ânsia de andar. O Tomás nunca chegou a andar sozinho, porque o tumor cerebral o fazia desequilibrar. Mas nunca deixou de tentar. Quando, num intervalo entre tratamentos, veio a casa cerca de uma semana, voltei a calçar-lhe o seu pequenino par de sapatos, e o Tomás voltou a exibir o sorriso orgulhoso e feliz que sempre acompanhava o ato.
Por serem tão importantes para o Tomás, estive tentada a calçar-lhos quando o deitei no seu caixãozinho pequenino e branco, mas um impulso final fez-me antes guardá-los na sua caixa de cartão. E é aí que eles continuam, até hoje.
Porque me lembrei desta história?
Porque neste mês de maio, neste mês da vida, uma amiga perdeu o bebé que trazia dentro de si. No dia anterior, tinha anunciado o novo maninho aos outros filhos… Antes da Páscoa, uma outra amiga passou pelo mesmo e, em anos anteriores, outras duas amigas também sofreram abortos espontâneos. Eu passei por este sofrimento duas vezes, e por isso conheço a dor íntima, difícil de expressar – porque tudo acontece dentro de nós – dos filhos que partem antes de os termos conhecido.
Porque a primeira notícia que tive ao regressar à escola, ao trabalho, na semana passada deste mês da vida, foi a de que um jovem de dezoito anos, que fora meu aluno do sétimo ao nono ano, se atirara para a linha do comboio no dia anterior. Era um rapazinho sério e inteligente, desafiador e calado. Há uma semana que a sua cara não sai do meu pensamento.
Quantos caminhos por trilhar, quantos passos por dar, a de todos os que deixam esta vida cedo demais! Os sapatos quase novos do Tomás são, para mim, o símbolo de uma caminhada que ficou por fazer. E quando os seguro na concha das mãos, neste mês da mãe da Terra e da Mãe do Céu, rezo por todas as mães, não só as mães gozosas, como também as mães dolorosas, as que perdem os seus filhos antes ou depois do seu nascimento, as que os veem sofrer com doenças físicas, como eu vi sofrer o Tomás, ou as que os veem afundar-se na pior das doenças, que é o desespero.
E no entanto, cá no fundo, eu tenho uma certeza que me anima, que me enche de alegria e me permite caminhar, com os pés bem assentes nos meus próprios sapatos: a certeza de que o caminho não termina aqui, mas se completa na eternidade. A certeza de que, um dia, reencontraremos todos os nossos filhos, os que conhecemos e os que não chegámos a abraçar, os que soubemos conduzir a Deus e os que não conseguimos ajudar.
Maio é o mês da vida, se primeiro for o mês da morte. É que não há vida sem morte, disse Jesus, e quem tiver medo à morte, nunca viverá em plenitude. Não é isso que nos ensina a Páscoa? Madalena foi a primeira a encontrar Jesus ressuscitado, porque foi a única que não se barricou no seu interior, de portas bem fechadas, mas antes se lançou “ainda escuro” no caminho do sepulcro.
(Já leram e rezaram o Ensinamento Mensal? Já ouviram o meu cântico novo? Já o aprenderam? Já o cantam aí em casa ou nas vossas paróquias?)
O Tomás nunca desistiu de tentar andar, e cada passo dado, bem agarrado às mãos dos pais, da avó ou do Francisco, fazia-o rebentar de orgulho. Ele foi tão feliz!
Um passo de cada vez, ao encontro do Senhor… Que seja essa a nossa firme decisão, neste tempo pascal! E também nós seremos felizes. Aleluia! Aleluia!
“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros”
Esta foi que a frase que me tocou profundamente este domingo.
Fico sempre muito “quietinha” (petrificada é mais acertado) quando a Teresa fala do Tomás, ou quando fala dos outros filhos que não chegaram a nascer. Não passei nem por uma situação, nem por outra.
Conheço várias pessoas que passando pelas duas ficaram uma vida inteira mergulhadas no sofrimento e na dor, tornando-se frias e quase culpando toda a gente por essa perda.
O “amardes” de que nos fala Jesus não é um amor de São Valentim, mas um amor de Cruz.
“Nisto” que escreveu hoje percebe-se que a fé não evita o sofrimento, mas dá-lhe um sentido.
Um beijinho
Teresa, raramente comento mas hoje não consigo deixar de o fazer. A forma como fala do Tomás é tocante e comovente de uma forma que não consigo explicar. Muito obrigada por partilhar connosco este texto 🙂
(E perdoe-me se estiver a ser intrusiva, mas não consigo deixar de achar que o seu Daniel é muito parecido com o Tomás, a julgar pelas fotos que tem partilhado… 🙂 )
É muito parecido, Ana… Às vezes, quando me volto de repente para ele, no meio dos meus afazeres, sou tomada de surpresa, e assusto-me… Bj
Li este post de manhã cedo e fiquei tão perturbada… Senti um aperto tão grande no peito, que queria ter comentado logo quando o li, mas não consegui e ainda não consigo dizer o que sinto…
É profundamente comovente a forma como fala dos filhos que perdeu…Como entende profundamente e sofre pelas mães que passaram pela mesma situação.
Um grande Abraço Teresa. Não sei dizer mais nada…
O Daniel é de facto muito parecido com o Tomás, ambos bebés lindos
Sim, o Daniel é muito parecido com o meu outro neto Tomás…..muito mesmo! E curioso que, sem saber a razão, disse à minha filha que viria um bebé de olhos azuis como o Tomás…..lindos!
Querida Teresa,
Que lindo testemunho tão…cheio de amor. Também já por muitas vezes pensei que o Daniel é muito parecido com o Tomás, como acho que a Lúcia é parecida com o Francisco, a Sara com a Clarinha, o David com o António, e… o Daniel com o Tomás: são irmãos! O Daniel é também muito parecido com o Niall. Vem tudo do mesmo caldeirão, aquele que às vezes não deixa passar o cesto da roupa pela porta 🙂 beijinho e continue a espalhar amor. E a sê-lo.
Ahah, Sara, obrigada por me ir relembrando as dificuldades da gravidez, porque tenho tendência a esquecer depressa 🙂 Agora basta-me mesmo o cesto!!! E que Deus nos ajude sempre a amar, sim… Afinal, nada mais importa! Bj grande!