Em Caná da Galileia...


Querida Amazónia e a infabilidade papal

Com a publicação do magnífico texto do Santo Padre “Querida Amazónia”, uma parte da Igreja Universal suspirou de alívio, outra parte rangeu os dentes. A questão da ordenação de homens casados e do diaconado feminino tinha-se tornado pedra de tropeço, e até o Papa Emérito parecia ter sido envolvido no assunto.

Muito eu li sobre tudo isto, nestas semanas ao serão. Vi a multiplicação de textos de sacerdotes defendendo acerrimamente o celibato, e de outros defendendo, também acerrimamente, a possibilidade de escolha. Mas não foi nada disto que, a mim, incomodou, porque a reflexão e o debate dos temas sempre foram a forma humana de fazer luz sobre eles.

O que verdadeiramente me incomodou foi outra coisa. Incomodou-me a dúvida que se foi levantando sobre a legitimidade do Papa Francisco para conduzir a Igreja da forma como o tem feito e para decidir sobre determinados temas, incomodou-me ler as ressalvas que foram sendo publicadas sobre a infabilidade papal (que, de facto, não deve ser invocada em todas as situações), incomodou-me que se citassem S. Paulo e S. Pedro como exemplo de que é possível e muito santo opormo-nos ao papa com “justa causa”.

Vamos lá esclarecer a questão de Paulo e de Pedro. A citação da polémica é esta:

Contudo, quando Pedro veio depois a Antioquia, tive de tomar posição contra ele, com firmeza, porque estava a agir de uma forma censurável. Pois ao chegar lá, a princípio comia com os cristãos não-judeus. Mas depois que chegaram também certas pessoas das relações de Tiago, começou a evitar esses contactos, afastando-se deles, com receio desses cristãos partidários da circuncisão. E foi de tal forma que até os outros judeus convertidos começaram também a andar com hipocrisia, a ponto de mesmo Barnabé se deixar levar por eles. Quando vi que não era correta essa maneira de proceder, nem era uma forma honesta de se conformarem com a verdade do evangelho, disse a Pedro, na presença de todos, que se ele, sendo judeu, tinha já posto de parte os costumes judaicos e vivia praticamente como um gentio, não era justo que obrigasse os não-judeus a viverem como judeus.” (Gl 2, 11-14)

Nesta citação, Paulo não toca, nem ao de leve, na doutrina que Pedro ensinava com a sua infabilidade papal. O que Paulo critica é o pecado de hipocrisia de Pedro (na opinião de Paulo). Ora não precisamos de Paulo para saber que Pedro era pecador! O Evangelho dá-nos evidências suficientes. E como ele, também Paulo o era. De facto, nesta carta temos apenas conhecimento do ponto de vista de Paulo, não de Pedro, e como bem sabemos, em qualquer discussão há sempre dois lados. O que teria Pedro a dizer, em sua defesa? Nunca o saberemos. Mas sabemos que, mais tarde, Paulo vai cometer o mesmo “pecado” que aqui acusa Pedro de cometer, a hipocrisia. Pois se aqui, Paulo se insurge por Pedro ceder aos costumes judeus, a fim de não causar escândalo, noutra altura irá obrigar Timóteo a circuncidar-se precisamente pela mesma razão (cf. At 16, 3).

Semelhantes citações têm sido feitas sobre Santa Catarina de Sena ou São Francisco de Assis, que nas suas épocas também denunciaram os pecados papais, com frontalidade semelhante à de Paulo. Mas nenhum destes santos criticou a doutrina ensinada pelos respetivos papas.

Paulo, Pedro, João Paulo II, Bento XVI ou Francisco, como tu e eu, foram ou são pecadores. Também o eram David, Salomão e todos os líderes de Israel. Deus parece ter especial prazer em comunicar a sua graça através de homens pecadores, a fim de manifestar o seu poder infinito.

Podemos confiar no Papa Francisco para liderar a Igreja? Perante os suspiros de alívio que li um pouco por todo o lado, parece-me que, para muitos, esta confiança depende das decisões que o Papa vai tomando: se nos agradam, confiamos; se não nos agradam, não confiamos. Cheguei a ler que talvez o Papa Francisco tenha sido positivamente inspirado pelo livro do cardeal Sarah, como se, sem este livro, a sua decisão pudesse ter sido outra!

“Obrigado, Santo Padre!” Vou lendo, e relendo, e voltando a ler, em sítios e blogues em várias línguas, no meio de muitos aplausos e de muita “obediência filial”, da parte de muitos que, antes, questionavam mais ou menos abertamente a liderança de Francisco. Fico com a sensação de que, se o Papa Francisco tivesse decidido de outra forma, muitos encontrariam todo o tipo de argumentos para credibilizar a sua “desobediência filial” ou para esmiuçar o que se entende de facto por infabilidade, e em que circunstâncias excecionais ela pode ou não ser invocada; ou argumentos para justificar ser “dever” de alguns “corrigir o papa” – de novo citando Paulo, Catarina de Sena, Francisco de Assis.

Eu gostei imenso da exortação papal “Querida Amazónia”. Mas não andava sem dormir, com medo das suas conclusões! O que o Papa Francisco decidisse, para mim estaria sempre bem, porque nunca, nunca, nunca duvidei ou duvidarei que o Papa Francisco seja capaz de conduzir a Igreja segundo a vontade de Deus.

Como a história de Pedro e de Paulo mostra, a infabilidade do papa não significa a impecabilidade do papa, isto é, ser infalível enquanto papa não significa não ter pecado pessoal. O papa peca como todos nós. Precisamente porque é pecador, dir-me-ão alguns, é que o papa pode não escutar o Espírito Santo “corretamente”, e talvez alguns de nós o escutem melhor… Este é o grande receio de muitos que eu conheço ou leio. E aí é que eu discordo em absoluto. O papa não erra quando está em jogo algo fundamental na Igreja, como por exemplo o celibato sacerdotal ou a ordenação das mulheres. Em relação a estes e outros temas, durmo sempre descansada. E porque não erra? Porque Deus não lho permite. Conduzindo a Igreja através das gerações, infalivelmente, está sempre, sempre o Espírito Santo.

Na Igreja, há muitos temas em debate, muitas questões abertas, muitas outras fechadas, alguns dogmas. Eu sei que nem tudo pode ser tratado a partir do dogma da infabilidade papal, e os teólogos têm o dever e o direito de levantar questões e procurar respostas. Mas isso não significa que Deus espere de nós oposição ao papa do momento, pois ele será sempre o pastor que Ele escolheu para conduzir as suas ovelhas a pastagens de vida eterna.

Há muitas formas de nos opormos ao papa, algumas claramente cismáticas, como está neste momento a acontecer na Alemanha com uma fação “progressista” da Igreja. Mas a mais subtil, e a que mais me tem incomodado, é a oposição a que alguém chamou “oposição estilo Pinóquio” (quem não conhece o Pinóquio?): com muito “respeito” e muita “obediência filial” na teoria, mas dificultando ao máximo as decisões do pai na prática…

 

 

 

 

9 Comments

  1. Sónia Santos

    Obrigado por este post Teresa, como sempre bastante elucidativo.
    Que riqueza está esse bochechinhas gostosas!

    Beijinhos

  2. Catarina Silva

    É tão injusto o que o Papa Francisco está a passar…Sinto-me tão triste por isso…:(

  3. Querida Teresa, sem querer duvidar da infalibilidade do papa, devo dizer que fiquei triste pela sua decisão….
    Talvez por viver num país em que a religião protestante está muito espalhada, confesso que faco parte da fação “progressista” da Igreja alemã.
    A questão da ordenação de homens casados e, sobretudo, do diaconado feminino é, na minha humilde opinião, actual e pertinente. Como mulher que sou e mãe de dua meninas, custa-me aceitar e explicar porque é que as mulheres não podem servir a Igreja de uma forma mais intensiva.
    Os homens e as mulheres não são iguais, mas deve haver igualdade de direitos. Jesus foi grande exemplo disso, foi muito moderno na sua relação com as mulheres do seu tempo…
    Há um ano fizemos “greve” em frente à nossa igreja paroquial e, se tornar a acontecer, faço outra vez greve.
    Gosto muito do nosso papa e tenho fé no Espírito Santo.
    Não me vou converter à religião protestante. Mas acho que o facto de os padres poderem ser casados ou as mulheres poderem ser sacerdotes não é uma questão essencial do catolicismo.
    É a minha opinião pessoal 😉

    • Teresa, leste a carta? Vê o ponto 100. Eu adorei a abordagem do Papa! Segundo ele – e eu concordo plenamente, mas não iria nunca pronunciar-me se ele decidisse diferente – a ordenação de mulheres seria clericalizá-las, e a atitude seria: pronto, já está, elas já têm o que queriam, não precisam de mais nenhum papel na Igreja. Que pobreza seria!!! Fica a citação:
      100. Isto convida-nos a alargar o horizonte para evitar reduzir a nossa compreensão da Igreja a meras estruturas funcionais. Este reducionismo levar-nos-ia a pensar que só se daria às mulheres um status e uma participação maior na Igreja se lhes fosse concedido acesso à Ordem sacra. Mas, na realidade, este horizonte limitaria as perspetivas, levar-nos-ia a clericalizar as mulheres, diminuiria o grande valor do que elas já deram e subtilmente causaria um empobrecimento da sua contribuição indispensável.
      Confia no Papa, Teresa! Confia. Deus não falha! Bj

    • Rogério Tavares Ribeiro

      Não concordo com essa visão progressista. O celibato é um grande dom de Deus para a igreja: ” Há aqueles que nasceram eunucos, (…) e há aqueles que se fizeram eunucos por amor do Reino de Deus”.
      Quanto à questão das mulheres serem ordenadas sacerdotisas também não concordo. Porque não foi essa a vontade do Senhor Jesus.
      E não era por viverem numa época patriarcal que Jesus só escolheu homens. Porque se fosse vontade de Jesus ordenar mulheres ele assim o fazia. Ou não foi Jesus aquele que mais quebrou tabus e discriminações?

  4. O Daniel já anda???? UAU!! Parabéns!! 🙂 Avizinham-se grandes e muitas aventuras!! 😉
    Muito obrigada por este texto Teresa… tantas vezes me esqueço dessa total confiança…

  5. Por aqui somos quase todas mulheres… e a Igreja é feminina, foi a uma mulher que Deus escolheu para nascer sem pecado original…
    É vasto o papel da mulheres, na Igreja e no mundo… Vasto, mas se possível com pouco poder, e é aqui que a Igreja é muito mundana… tão parecida com o contexto em que se move. Porque a Igreja é humana.

    Eu não concordo plenamente com o modo como a Igreja está estruturada e não me iludo com a exortação à obediência, tão elogiada e quase apontada como via de santidade.
    É-o de facto, porque ter a humildade de acatar quando se discorda e cumprir, é exemplo a seguir de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas não deixa de ser também instrumento de perdição para quem ordena…
    E reporto-me a coisas simples, porque nas questões profundas, de livre arbítrio, recordo sempre que Deus nos fez livres e nos quer livres, importa que eu decida o que fazer, porque serei eu a testemunhar a minha vida perante Ele e aí não me poderei escudar numa obediência cega…

    Quando os jogos de poder, gratuitos e pessoalmente vãos, se intrometem nas questões essenciais resulta a confusão… e é a isto que assistimos. Um imenso medo de mudar, um acto de contrição que ninguém ousa fazer e Jesus, onde caberá Jesus neste desnorte?

    Entendo que devemos seguir o Papa e confio que o Espírito Santo o guie. E vivemos tempos de mudança, mudança real, em busca da vida plena, no mergulho profundo no Evangelho.
    Que não fazemos, flutuando apenas em questões que não têm suporte em nenhum dos textos essenciais de Cristo.
    Fazei isto em memória de mim… e quem são os destinatários do pedido?

    Temos de dar tempo ao tempo e observar que ,em nome de um suposto bem, há todo um burilado de interesses e contra-interesses, com citações e escritos contraditórios entre si, mas com muita coerência interna, o que me entristece imenso.
    Não vou ler um imenso texto escrito há medida e por encomenda, procurando evitar cisões e desconstruir setecentos ou oitocentos anos de estrutura teológica.
    Este é um pequeno passo, para que a mudança ocorra na continuidade e se não desacredite a vida de muitos que estão nos altares… só espero que ainda se vá a tempo de a Igreja continuar a ser Católica…

    • O Espírito Santo nunca abandonará a Igreja! Católica, sê-lo-á sempre, sempre! Assim afirmamos no Credo. Nenhum ser humano ou celestial, em nenhuma circunstância será capaz de a destruir! Bj!

      • Sim, assim o afirmamos no Credo e, como é óbvio, eu não me calo nessa etapa da oração!
        Espero continuar a ser capaz de ser o pequeno grão de pedra neste imenso edíficio que somos… que Deus Nos guarde e Sua Mãe Santíssima Nos cubra com o Seu Manto… bjs

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