Em Caná da Galileia...


Rotinas familiares em tempo de tele-tudo

“Mãe!” A Sara está aos gritos, como sempre que fica nervosa.

“O que se passa, filha?”

“Como é que eu vou ver a telescola se não temos televisão?”

Pois, é verdade, o nosso coelhinho rebentou com a televisão, e nem o nosso engenheiro mecânico quase formado a conseguiu recuperar. Mas a telescola também passa na net, Sara, não te aflijas! Quem tem um tablet para emprestar à Sara? David? Pode ser?

Ótimo, a Sara está pronta.

“Mãe, há algum sítio da casa em que eu possa falar alto?”

A Clarinha vem ter comigo à cozinha, um computador numa mão, montes de papéis na outra.

“Não podes ficar no escritório?”

“Não, o Frankie está a ter aula online. Não posso fazer barulho. Mas não consigo estudar em voz baixa… São muitos termos de anatomia para decorar.”

“Bem, Clarinha, o teu pai está no quarto a trabalhar, como sempre; a Lúcia está no vosso quarto a ter aulas por Zoom, o David e o António estão, cada um com os seus auscultadores, no quarto dos rapazes, a Sara está na sala a ouvir a telescola, eu estou na cozinha numa reunião Zoom com os meus colegas de trabalho.” Sim, porque eu também estou a trabalhar a todo o vapor, e começarei a dar aulas online amanhã às oito e meia da manhã (ainda não percebi bem como, mas tudo se fará).

A Clarinha suspirou. Mas parece que descobriu um lugar:

Entre duas reuniões, encontrei uns momentos para ir passear com o Daniel. Fomos, como sempre, ver as ovelhinhas ao fim da rua, que continua tão deserta como sempre esteve. Conversaram todos um bocadinho, ovelhas e bebé, cada qual na sua linguagem, e o Daniel adormeceu no caminho de regresso. Tenho tempo para pôr uma sopa ao lume…

“Mãe, não está na hora da reunião com a minha professora?” Duas meias-horas de telescola passam a correr, e a Sara está pronta para a tarefa seguinte.

“É verdade, Sara! Nem me lembrava. A tua professora vai fazer uma reunião convosco, para agendar a reunião semanal via Zoom. Vamos lá! Terá que ser aqui na cozinha. Anda, clica aí!”

Vou arrumando a louça na cozinha, mas com cuidado, pois tenho de passar por cima das panelas que o Daniel, pelas sete da manhã, espalhou. Não há brinquedo que lhe dê mais prazer 🙂

O Niall espreita à porta da cozinha: “Teresa, nesta próxima hora, por favor não entres no quarto. Deixo-te aqui fora tudo para mudares a fralda ao Daniel se for preciso. Vou estar numa conferência com o vídeo ligado, com trezentas pessoas de muitos países diferentes, e não quero que vejam o meu filho de rabo ao léu.”

Ainda lhe estou a responder, procurando uma brincadeira divertida nas minhas palavras, quando chega a Lúcia:

“Mãe, preciso do teu telemóvel para tirar fotos aos meus trabalhos e enviar aos professores no  Google Classroom”, pede. Entrego-lhe o telemóvel, continuo a falar com a professora da Sara, acabo de descascar as batatas e, talvez com a atrapalhação, corto-me num dedo. Preciso de um penso rápido. Onde será que os coloquei?

“Mãe, a minha aula acabou. Onde posso fazer uma video chamada com o Gaspar?”

Agora é o António. Felizmente, já tenho a resposta:

E o melhor mesmo é deixar um banquinho estrategicamente colocado no hall de entrada, para o próximo que precisar de isolamento social dentro desta casa!

O almoço reúne-nos a todos em volta da mesa familiar. Depois há tempo livre, antes de se retomarem os trabalhos.

A escola à distância parece estar bem organizada, e os professores têm sido fantásticos. Sinto-me orgulhosa dos meus colegas de profissão!

Às 17 horas, os quatro estudantes mais pequenos estarão livres até ao dia seguinte. E então, depois de conversarem talvez um pouco com os primos ou amigos por video chamada, desligarão os computadores. Pelas 18 horas, será a vez do pai desligar o seu, e então, os meninos e o pai poderão brincar no jardim ou na sala, enquanto eu acabo o jantar.

A oração familiar continua a acontecer apenas depois do jantar, pois apesar de estarmos todos em casa, os horários durante o dia continuam apertados, visto ninguém estar de férias. Não, aqui não rezamos mais do que já rezávamos, porque já rezávamos muito. Nem vemos mais televisão do que víamos, porque já não víamos nenhuma. As notícias do covid e afins só nos chegam, e vagamente, pelo feed do telemóvel.

Alguém desabafava comigo num destes dias, por mail: “Teresa, será normal sentir-me tão frustrada com estas rotinas de confinamento e os filhos todos em casa?” Claro que é normal. Uma família saudável não vive confinada dentro de quatro paredes, nem cresce a acreditar que o mundo termina no seu jardim (quando o tem). O vaivém casa-escola, casa-trabalho, ainda que cansativo, é fonte de saúde, resiliência e crescimento. E os piqueniques, os passeios em família, a visita à avó, tudo isso nos faz tanta falta. Como famílias cristãs, fomos feitos para estar no mundo, sem lhe pertencermos, não é verdade?

Por aqui, aceitam-se e vão-se encaixando as frustrações, sem perder a alegria. Primeiro foi o cancelamento, ainda em fevereiro, da competição de Rubic Cube. Seria a primeira do David, que iria acompanhar o seu orgulhoso irmão mais velho. Depois, o cancelamento da ginástica e do basquetebol. Por fim, a escola. Os gritos de entusiasmo “viva, não há escola!” em breve deram lugar a suspiros de saudade. Foi preciso uma pandemia para as crianças e os adolescentes declararem o seu amor inconfessado à escola… E a universidade? Se o Francisco pode fazer quase tudo online, no seu curso de engenharia, já a Clarinha pode fazer pouco, pois fisioterapia sem “mãos na massa” não resulta muito bem. E que saudades do Centro Universitário onde ia rezar, participar na missa quase diariamente, conviver…

Todos temos direito a sentir-nos frustrados, sim.

Mas não haverá um segredo precioso aqui escondido? Porque às vezes, precisamos de um laboratório de família, onde experimentamos e reinventamos o tempo que nunca tivemos juntos, onde nos aborrecemos juntos e descobrimos formas de nos divertirmos juntos também, onde testamos os limites uns dos outros para os aprender a esticar.

Podemos, agora, estabelecer rotinas que, quem sabe, continuarão muito para além do confinamento. A hora do conto, a hora do jogo familiar, a divisão de tarefas na arrumação da casa, as lições de culinária, o tempo de brincadeira entre irmãos, que fazem parelhas inesperadas, uma hora de deitar tranquila e regular, para deixar espaço de intimidade e conversa para o pai e a mãe ao serão…

Podemos, agora, contemplar um bocadinho mais o milagre de estarmos juntos, de sermos família, de termos sido entregues por Deus ao cuidado uns dos outros por uma breve passagem sobre a Terra. Nunca me recupero da contemplação deste milagre, eu que tenho tantas saudades do Tomás, eu que sei tão bem como este milagre é frágil e precioso. Perdemos tanto tempo a fugir do essencial, e o essencial está quase sempre aqui e agora, ao nosso alcance!

No meio da frustração, da tensão, da falta de espaço, há momentos que nos marcarão para sempre – se, como os discípulos de Emaús, não permitirmos que o Senhor passe adiante sem entrar em nossa casa:

A Clarinha vem ter comigo num destes finais de tarde.

“Mãe, vamos juntas fazer o jantar? Hoje quero que sejas tu a escolher as canções para irmos ouvindo no meu telemóvel. Diz-me, que cantores é que gostavas de ouvir quando tinhas a minha idade? Vamos cozinhando e cuidando do Daniel ao mesmo tempo…”

Fechamos a porta da cozinha e lá ficamos as duas – os três – a cozinhar. A cantar. A partilhar confidências. E quem sabe, a criar as nossas próprias canções, algumas com notas musicais…

 

 

 

8 Comments

  1. E as crianças:jovens que têm que ficar sozinhas com todas as tarefas escolares (e partilhar equipamentos informáticos, gerir desavenças, orientarem-se com o almoço…) porque os pais têm ambos que trabalhar? O estado considera que a partir dos 12 anos os pais são dispensáveis….
    Quem me dera poder estar com os meus filhos em casa e pelo menos partilhar com eles a frustração do confinamento!

    • Acabo de dar uma aula via Zoom para alunos de treze anos, muitos deles sozinhos em casa, sim, Lilian. Que dizer? Peçamos a Deus que esta provação acabe depressa! Um beijinho, unidas em oração e sacrifício!

    • Sónia Alexandrina Santos

      Nestes dias ouvia de uma colega uma outra dificuldade, a do filho adolescente que fica mesmo sozinho em casa porque é filho único e os pais vão trabalhar. Preocupava-se com a sua “sanidade mental” por ter de gerir os kilos de trabalhos e emails da escola sozinho e porque não gosta das video-chamadas, contactando com os amigos apenas por SMS.
      Cada família vai encontrando as suas dificuldades particulares e refletindo nos percursos de vida feitos e, sobretudo, vão descobrindo em cada um capacidades novas (ou latentes), soluções novas!
      Cá por casa temos espaço dentro e fora, apenas crianças pequenas, um pai em casa, apenas um estudante online. Não nos podemos queixar. Por isso, fazemos por rezar mais, querendo e oferecendo o pequenino sacrifício que isso nos traz com crianças pequenas. Sabendo, no entanto que no fim de contas ganhamos mais do que oferecemos…
      Quanto à televisão, não lhe permitimos o desassossego “covid ao segundo”, permanece desligada como antes, notícias covid também bastam as do feed e as que a mãe traz todos os dias do hospital.

  2. Sónia Alexandrina Santos

    “Podemos, agora, contemplar um bocadinho mais o milagre de estarmos juntos, de sermos família, de termos sido entregues por Deus ao cuidado uns dos outros por uma breve passagem sobre a Terra.” – É isto mesmo! O centro da vocação familiar e fundamento tão essencial e querido das Famílias de Caná.
    Circunstâncias, são circunstâncias. Com Covid ou outra doença qualquer, mais do que esse vão e superficial, quase ingénuo, desejo do “vamos ficar todos bem”, digamos antes “vamos lá ESTAR todos bem” encaixando as frustrações com resiliência e Alegria!
    Obrigada, Teresa!

  3. Teresa, adorei o post, cheio de situações quase cómicas, cheio de amor e profundidade. Cá por casa, também tem sido difícil gerir o isolamento. Mas somos uns sortudos, pois estamos todos em casa e só um em telescola, e estamos todos bem. Espero que consigamos ser ainda mais unidos e focados no essencial depois destes dias de pandemia.

  4. Obrigada pelo post. Ajuda-me a criar uma visão de como um dia, se Deus quiser, gostaria que a minha família se relacionasse. A parte final deixou um nó na garganta….como é difícil às vezes nos entendermos com quem mais amamos e no fim, afinal só queremos proximidade. Mas às vezes criarmos tantas barreiras, ficamos tão distantes do essencial.
    Isto não soou muito coerente, mas valeu como um desabafo! Obrigada. 🙂

    Bem hajam e saúde para todos!

  5. Célia Canadas

    Obrigada pela partilha!🙏🏼🙏🏼🙏🏼

Responder a Célia Canadas Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *