Em Caná da Galileia...


Servir a dois senhores

Hoje vim da missa a meditar nesta pequena frase do Evangelho:

Nenhum servo pode servir a dois senhores, porque, ou não gosta de um deles e estima o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. (Lc 16, 13)

Jesus falava, sabemo-lo, de Deus e do dinheiro. Mas a Palavra é válida para qualquer outro “senhor” que tenhamos. E o “senhor” que nos ocupa mais tempo e atenção, e pelo qual, às vezes, somos capazes de deixar tudo – valores, família, vocação – é nem mais, nem menos que o nosso próprio eu.

Há quem lhe chame “a tirania da felicidade”. De facto, este “senhor” que somos nós é  um verdadeiro tirano… Vivemos num tempo em que, acima de tudo, importa servir-nos a nós próprios. Não teremos nós o direito a sermos felizes? Não fomos nós criados para sermos felizes? Não “merecemos” nós ser felizes, nós que até somos boas pessoas? Então porque não havemos de procurar esta felicidade acima de tudo, custe o que custar, doa a quem doer?

No esforço imenso de servir este “senhor”, o nosso mundo foi construindo uma falsa imagem de Deus, para que também Deus o possa servir. Assim, vamos falando da misericórdia de Deus bastante levianamente, afirmando que “Deus aceita cada passo do caminho que eu fizer”, que “Deus só deseja que eu seja feliz”, que “não há caminhos melhores que outros”, que tudo está bem, e que, se eu me sentir bem, até Deus fica bem. “Não invocarás o nome de Deus em vão”, penso cá para mim, quando vejo tamanho abuso do nome de Deus.

Depois vêm aquelas mensagens, em canções e literatura, de que não nos devemos arrepender de nada, pois tudo serve para o nosso crescimento pessoal, a nossa aprendizagem pessoal, a nossa felicidade. Eu, eu, eu. E quando chegar ao fim, eu outra vez. Eu novamente. Eu sempre. Eu apenas.

Fico a pensar nisto ao ver a facilidade com que se destrói uma família nos nossos dias. Não, não falo dos pagãos, falo dos cristãos, dos que dizem amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmos. Quando um marido cristão sai de casa porque já não “sente amor” pela mulher, quando uma mulher cristã “se mete no meio” de um casal, que palavras ou citações usarão eles nas suas mentes para justificar as suas traições, covardias e injustiças? Serão palavras das Escrituras, da renúncia às paixões, da semente que morre para germinar, da fidelidade nas pequenas coisas, do Amor Crucificado? Ou palavras desta nova “bíblia” que é o amor ao próprio eu, e que para servir o próprio eu, manipula o nome de Deus, invocando-O em vão?

Não podemos servir a dois senhores. Mas então, não estamos no mundo para sermos felizes?

Não! Não, não estamos no mundo para sermos felizes! Não! Onde é que vocês leram isso? Em que parte da Bíblia é que encontram o mandamento de ser feliz? Eu conheço muitos imperativos do Senhor, em variados livros da Bíblia. Um dos primeiros diz assim:

Caminha na minha presença e sê perfeito. (Gn 1, 17)

E o meu preferido, as palavras de Deus a Josué, depois da morte de Moisés, diz assim:

Como estive com Moisés, assim estarei contigo; não te deixarei, nem te abandonarei. Sê firme e não desanimes (…) sê forte e corajoso, para fielmente observares toda a Lei que Moisés te prescreveu. Não te afastes dela nem para a direita, nem para a esquerda. (Js 1, 5-7)

Mas não conheço nenhum mandamento da felicidade.

O mandamento de Deus é o mandamento da santidade. Estamos no mundo, diz a Escritura, para servir o único Senhor, o Deus vivo, o Deus de Jesus, sem nos afastarmos nem para a direita, nem para a esquerda de nenhuma das suas Palavras. Estamos no mundo para aprender a amar, e amando, nos tornarmos santos.

Onde é que aqui entra o tema da felicidade? Bem, quando fazemos o que está correto, quando renunciamos a servir o nosso eu para servir os outros, quando recusamos a satisfação do nosso apetite natural para não magoar o outro, quando somos fortes, corajosos, fiéis, firmes – segundo o mandamento de Deus a Josué – quando crescemos na perfeição – segundo o mandamento de Deus a Abraão – então no solo do nosso coração e da nossa vida começa a florescer a felicidade. Ela é sempre uma consequência, não uma causa.

Faz isto e serás feliz!

É por isso que os cristãos são felizes mesmo no meio do sofrimento, da pobreza, da perseguição e da injustiça, como cantam as Bem-aventuranças. E é por isso que os cristãos não têm medo da dor, da doença, da cruz ou da morte. É por isso que os cristãos vivem neste mundo com os olhos bem fixos no outro, no mundo onde a sua santidade será premiada, para sempre, com a felicidade eterna. Assim prometeu Nossa Senhora em Lourdes à pequena Bernardette:

Prometo fazer-te feliz, não neste mundo, mas no outro.”

Não podemos servir a dois senhores. No dia em que escolhermos servir-nos a nós próprios, iremos trair o verdadeiro Deus. E nesse dia, teremos escolhido a infelicidade eterna. Chama-se Inferno, e sim, existe e, tal como o Céu, começa aqui mesmo na Terra…

Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor!

Amarás o Senhor com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças,

e amarás ao próximo como a ti mesmo.

Faz isto e serás feliz.

Ámen!

 

 

12 Comments

  1. Verdadeiramente inspirada pelo Espirito Santo. Não não podemos ser escravos deste eu desmesurado que o mundo moderno entronizou… Maria disse que sim e a Sua vida foi um constante apagamento de Si mesma no serviço e presença. Nenhum outro ser humano é mais enaltecido! Beijinho

  2. Catarina Silva

    Muito duro este texto… Mas verdadeiro. É de facto assim. E é esta a fé que professamos. Não há volta a dar…
    Há depois as circunstâncias individuais de cada um, aquelas que só o Senhor conhece e que só Ele poderá julgar. Não adianta disfarçar ou tentar esconder, pois o Senhor conhece Tudo. Tudo mesmo. Até aquilo que nem imaginamos!
    Agradeço Teresa, a dureza do texto. Torna muito claro aquilo que é a verdadeira felicidade cristã, coisa muito difícil de entender neste nosso tempo…

  3. Certeira como sempre Teresa. Faz me recordar as palavras de uma homilia escutada na JMJ de Madrid. Dizia o padre que a doença mais grave de todas do nosso tempo/sociedade era o “umbiguismo”, vivemos a olhar para o nosso umbigo e nada mais interessa.
    Muito séria esta reflexão.

  4. Isabel Marantes

    Querida Teresa,
    Que interessante que tenha colocado este post no dia em que celebramos o Santo Padre Pio, este religioso capuchinho que recebeu dons especiais de Deus, nomeadamente os estigmas de Jesus Cristo nas suas mãos, pés e lado… durante os 50 anos em teve os estigmas, este santo foi um sinal de que nós, que somos chamados a ser o corpo de Cristo, estamos realmente feridos nesta nossa vida terrena…a nossa condição está ferida. E todos sofremos. Mas Jesus, sofrido na cruz, mostra-nos que está connosco, que sofreu para nos mostrar que só há uma forma de chegar à glória, à felicidade: esvaziarmo-nos do “eu” que a Teresa fala e fazermos com que nossa vida seja uma dádiva de Amor a Deus e aos outros.
    Mas porque quer Deus que nos esvaziemos? Ninguém gosta de estar vazio!
    Porque, como escreveu o Santo Padre Pio: “Jesus quer preencher todo o nosso coração”! Enchê-lo do Seu Amor… e não consegue se o nosso coração estiver cheio de outras coisas…
    E então aí penso que, mesmo nesta Terra, conseguiremos sentir um pouco da verdadeira e profunda felicidade a que cada um de nós foi chamado… a única felicidade que nos tirará a sede de algo mais que todos nós sentimos.. essa felicidade, que só será naturalmente completa no Céu, é a Comunhão com Deus…
    Obrigada por este texto, Teresa!

  5. Direto e poderoso, este texto. Obrigada!

  6. Sónia Santos

    “Não nos devemos arrepender de nada”…? Este chavão é parecido e vem no seguimento de outro: “Se voltasse atrás faria tudo igual”…
    Pois eu arrependo-me de muitas coisas, graças a Deus! E é mesmo por Graça de Deus que o arrependimento nasce no meu coração em relação a tantos assuntos, em decisões, atitudes e reacções tomadas. Coisas que fizeram o caminho da minha vida ser um e não outro. Não, não é tudo igual (mente bom), não. Há caminhos mais santos do que outros, há opções mais santas do que outras, há atitudes e reações mais santas do que outras. E, portanto, se voltasse atrás, com certeza, faria muitas coisas de forma muito mais santa. E isto não soma a nenhuma atitude de carrasco com os passados (de cada um), com a ignorância de pecado por falta de conhecimentos , ou maturidade, etc. Soma antes a uma atitude de verdadeira misericórdia e redenção e, também humildade.
    Nem tudo é relativo. Nem tudo é aceitável como bem. Se é amargo, não é doce! Se é trevas, não é, nem leva à Luz.
    “Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo!
    Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e prudentes diante de si mesmos!” (Is 5 20,21)
    Acredito profundamente que mais vale viver alegremente (“cristãmente”) pesarosa pelo desgosto do pecado cometido do que orgulhosa, ou ingenuamente mascarar o mal de bem presente, ou futuro. É preciso encarar o touro de frente para o enfrentar (e não é redundância), se for um bocadinho mais à esquerda ou à direita até o touro se baralha!

  7. Obrigada pelo post e pelos comentários!
    Há tanto tempo que esperava que pegasses neste tema….
    Post muito duro, sim, mas também muito verdadeiro…
    Tantas vezes me pergunto, ou pergunto a Deus: “Porquê isto? Porquê eu? Que fiz eu para merecer isto? Há tantas pessoas muito piores do que eu, e são felizes sem esforço.”
    Mas no fundo vou sentindo uma voz que me diz “O meu reino não é deste mundo”.
    Também sou daquelas que diz que não se arrepende de nada, ou que se voltasse atrás faria tudo igual. Não porque ache que fiz tudo bem, mas porque aquilo que fiz me trouxe até onde estou. Onde estou eu? “Estou” mãe de duas meninas.
    Mas a verdade é mesmo essa: no fundo arrependo-me sim,como diz a Sónia “em relação a tantos assuntos, em decisões, atitudes e reacções tomadas. Coisas que fizeram o caminho da minha vida ser um e não outro. Não, não é tudo igual (mente bom), não. Há caminhos mais santos do que outros, há opções mais santas do que outras, há atitudes e reações mais santas do que outras. E, portanto, se voltasse atrás, com certeza, faria muitas coisas de forma muito mais santa. E isto não soma a nenhuma atitude de carrasco com os passados (de cada um), com a ignorância de pecado por falta de conhecimentos , ou maturidade, etc. Soma antes a uma atitude de verdadeira misericórdia e redenção e, também humildade.”

    Acredito profundamente na promessa de Nossa Senhora a Bernardette, que não conhecia:
    “Prometo fazer-te feliz, não neste mundo, mas no outro.”

    OBRIGADA!!!!!

    • Catarina Silva

      Teresa A.
      Por favor não leve a mal o que lhe vou dizer, nada sei da sua vida e é sempre muito fácil opinar em vida alheia….Mas, queria só dizer-lhe que quando lhe vier ao pensamento esse tipo de questões: “Porquê isto? Porquê eu? Que fiz eu para merecer isto? Há tantas pessoas muito piores do que eu, e são felizes sem esforço.”
      Lembre-se sempre que a felicidade (aquela que conseguimos alcançar neste mundo, porque a verdadeira só teremos no outro), é sempre uma escolha. Somos nós que escolhemos o que fazer com a maldade que nos fazem. E é essa escolha que determina a nossa essência e que nos aproxima de Deus.
      Deixe que o Senhor se encarregue de pôr tudo no seu devido lugar e até lá, tente ficar em paz. Para que também as suas meninas possam ter alguma paz…Um beijinho e desculpe mais uma vez.

  8. Desculpem mas tenho de dar mais uma achega: Este pot fez-me vir à mente uma passagem da Bíblia que eu “adoro”:

    Mateus 11: 28-30

    “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei.
    Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.
    Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”

  9. Este texto tem muito para reflectir… é duro por ser muito verdadeiro… Muito obrigada Teresa! beijinhos!

  10. Texto muito duro…mas fulcral na essência. Tocou no ponto certo! E, sim, de facto a Bíblia até tem a ‘receita’ da felicidade….
    As bem-aventuranças, que em muitas traduções não traz ‘Bem-aventurados’, mas ‘Felizes os que….’
    A maior dificuldade é combater as justificações e argumentos que vamos ‘repetindo’ na nossa mente para ‘aliviar’ e mitigar os remorsos de fazer o que não está correto, porque no fundo até sabemos qual o caminho, qual a atitude correta, mas não dá jeito, não é fácil, é incómoda e custa aceitar….Então procuramos o ‘conforto’ nos argumentos e deturpações que vamos conseguindo encontrar para que a nossa consciência não pese tanto, e erradamente atribuimo-las também a Deus. Oh se pudessemos ter a força de procurar esses argumentos e forças na Palavra, certamente iriamos encontrar a coragem e determinação de procurar caminhar em direção ao objetivo certo!
    É um desafio constante esta busca de permanecer firmes na vontade de Deus…quase como uma luta interior, que face às tentações do Mundo, nos tenta desviar do caminho. A resposta: perseverar na oração, na Palavra e na Eucaristia.
    Bem-haja Teresa pelo seu testemunho forte e firme na fé.

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