Em Caná da Galileia...


Silêncio

Não vi o filme, e por isso não posso nem quero escrever sobre o que não conheço. Seria um disparate! Mas posso escrever sobre o que vou lendo e escutando, aqui e ali, porque ultimamente tenho encontrado neste tema matéria suficiente para a minha meditação pessoal.

“Que farias, se estivesses na situação do padre Jesuíta, e te fosse pedido que apostatasses (renunciasses à tua fé) sob tortura?” “Será que apostatar sob tortura vale como apostasia?” “Será correto ou possível escolher entre caridade e martírio?” As perguntas repetem-se. Nas redes sociais, nos jornais e nas televisões. Que farias, se? Que deveríamos fazer, se? Que é correto fazer, se?

Se, se, se.

No domingo passado, na nossa paróquia foi a Festa da Fé. Foi sugerido a todos os paroquianos e a todas as famílias em catequese que levassem para a Eucaristia paroquial uma vela, para ser acesa no círio pascal antes da recitação do Credo. Um momento lindo, que se prolongou ao som de cânticos, pois o senhor padre fez questão que todos fossem mesmo buscar a sua luz ao círio pascal.

Depois pediu-nos para permanecermos de velas acesas, “virgens prudentes” aguardando a chegada do Esposo. Só apagámos as velas quando, por fim, o Esposo chegou no Pão e no Vinho tornados Corpo e Sangue de Jesus.

O Santuário ficou cheio de luz… As velas acesas iluminavam sorrisos e silêncios.

A maior parte das crianças da catequese e dos seus pais, contudo, não esteve presente na Eucaristia. Muitos não terão dado o devido valor a esta festa, preferindo ir a outra missa. Graças a Deus, guardaram intacto o preceito dominical, embora lamentemos a pouca importância dada a esta – e a outras – celebrações de toda a grande família paroquial. As festas paroquiais – e este ano temos tido várias – são momentos fundamentais na vida de uma paróquia, e cada um de nós deve sentir-se comprometido com elas.

Mas a grande maioria dos que não apareceram, também não foram a mais nenhuma Eucaristia. Estava a chover, estava frio, era manhã cedo, estamos na época das gripes. Na segunda-feira, algumas crianças tinham testes e precisavam de estudar, pelo que achavam perfeitamente justificada a sua ausência. Faltar ao judo, às aulas de guitarra, ao futebol ou ao ensaio do coro escolar não pode ser, porque o treinador, o professor ou o maestro são exigentes e não aceitam desculpas. Mas faltar à Eucaristia? Que importa isso? Compromissos com o coro da missa? Compromissos com o serviço do altar? Compromissos com o grupo de catequese? Compromissos com Aquele que, ao longo de toda a semana, 24 sobre 24 horas, me dá a vida e me sustenta? Deus compreende…

“Mas, Teresa, só faltei à missa uma vez. Uma vez! Que mal há nisso?” Que dirias se o teu marido ou a tua mulher te fossem infiéis uma vez, só uma vez? Há coisas na vida em que uma vez já é demais. E a fidelidade ao Senhor está ao nível da fidelidade conjugal, sinal da primeira. Não temos como contornar a questão, tão bem explicada por S. Paulo na sua Carta aos Efésios.

Apostasia sob tortura? Será que precisamos mesmo de imaginar cenários? Neste cantinho do mundo de brandos costumes, ninguém precisa de caminhar horas e horas para celebrar a Eucaristia, à chuva, ao vento, ao frio, à neve, e a Eucaristia não rouba a ninguém mais do que uma mísera hora – vá lá, hora e meia, se incluirmos os trajetos quentinhos no carro – ; hora que num instante somos capazes de perder em frente do televisor, ou numa qualquer conversa sobre trivialidades.

E mesmo que, por impossível que fosse, não tivéssemos uma hora; mesmo que, por impossível que fosse, a hora da Eucaristia fizesse uma diferença séria no resultado do teste de segunda-feira – mesmo assim, que justificação damos ao Senhor? Ele deu a Vida por nós, sob tortura, e tortura da pior espécie. E nós não Lhe damos uma hora, uma única hora da nossa semana? E não nos alegramos quando esta hora é para nós ocasião de – digamos assim – martírio sem sangue?

Vou transcrever um excerto do magnífico livro de João César das Neves, O Reino de Deus está Próximo, da Paulus, 2004 (portanto, anterior ao filme de Scorsese…). Perdoem-me a extensão do excerto, mas aceitem o desafio de o ler na totalidade:

O que é que distingue o homem moderno ocidental de todas as épocas anteriores? Trata-se do primeiro caso de uma cultura totalmente evangelizada que abandona a Igreja. Em dois mil anos de História, não existe mais nenhum caso comparável de abandono da Fé.

A única situação de apostasia generalizada e duradoura anterior foi o caso do Japão, que após um século cristão, repudiou e martirizou a Igreja. (…) Seguiu-se uma das maiores perseguições aos cristãos que a História regista, conseguindo-se o martírio e o silenciamento da Igreja japonesa até aos finais do século XIX, altura em que se revelaram dezenas de milhar de cristãos miraculosamente sobreviventes.

Mas este exemplo não tem qualquer paralelo com o que se verificou na sociedade ocidental. Primeiro, a milenar penetração do Cristianismo no ocidente era incomensuravelmente mais profunda que a do Japão. (…) A apostasia encontra-se no centro nevrálgico dos dramas da sociedade ocidental. (p 74-75)

 

Enquanto os cristãos católicos das nossas comunidades, que frequentam a catequese ou a ensinam, que participam em movimentos apostólicos e, de alguma forma, na vida das suas paróquias; enquanto estes mesmos cristãos católicos se acharem no direito de, por alguma razão para eles válida, faltar à missa dominical, não percamos o nosso tempo com os “ses” das torturas longínquas e dos dramas éticos de escolhas impossíveis. Não vale a pena.

Se? Não há “se” que justifique a nossa tibieza e o nosso desplante.

Jesus deu a Vida por mim. E o ato mais central da minha vida terá de ser – custe o que custar, e a nós, neste cantinho do planeta, “custar” nem sequer é palavra que possamos empregar – o ato mais central da minha vida terá de ser estar ali, diante da sua Cruz, acolhendo o seu Amor absurdamente imerecido.

Ainda não resististes até ao sangue na vossa luta contra o pecado… (Hb 12, 4)

12 Comments

  1. Belíssima reflexão! Cada vez mais profunda e incisiva.
    Obrigada.

    • O objetivo deste site, Helena, como se deve ter dado conta, é diferente do do blogue que lhe deu origem. Aqui, procuro levar as famílias o mais longe possível, e não apenas acordar para a fé… Vamos ser cada vez mais profundos, sim, e cada vez mais exigentes connosco mesmos, Famílias de Caná, porque o nosso chamamento – como o de todos os batizados – é para nada menos que a santidade. Bj

  2. Obrigada por aquilo que escreve, aprecio muito a forma como o faz.
    Não costumo participar nos comentários, mas visito o site sempre que posso. Desejo todo o bem para toda a família.

    • Obrigada, Lucília, e seja bem-vinda aos comentários! Eles são importantes para debatermos ideias e aprofundarmos questões! Bj

  3. Olá Teresa!

    Em vi o filme, e achei que para quem é católico, podem fazer-se mil e uma reflexões. Para quem não é crente, facilmente tira conclusões redutoras.

    Agora, o filme é arte, e como arte que é, tem um impacto emocional imediato, mas depois podemos ir “descascando”, como uma cebola, as várias camadas, e aprofundando o que sentimos e reflectindo.
    É inevitável quando o filme acaba, pensar incessantemente “será que eu pisava a imagem?”Mas quando “digerimos” melhor o filme (fui vê-lo duas vezes!), começam a surgir outras questões, como o ponto que menciona no seu texto….recordei o testemunho da Irmã Guadalupe na Síria. Bolas, será que eu tenho noção do privilégio que é poder ir à Igreja sempre que me apetece? vou descartar o privilégio, quando “não me apetece”?

    Boa reflexão!
    bjs

  4. Obrigada por este post, Teresa. Recém chegada a uma nova cidade e ainda em processo de mudanças e ambientação, admito que tive a tentação de faltar hoje à Missa. Mas bastou-me ler este post para mudar logo de ideias! Bem-haja.

  5. Talvez haja apostasias e apostasias!
    Discernimento: sempre a ferramenta que nos leva ao Bem Maior!

    Um artigo sobre apostasia também mas numa realidade totalmente diferente da que a Teresa menciona aqui.
    http://observador.pt/opiniao/silencio-nao-ha-fe-sem-duvidas/.

    Talvez valha a pena ler quanto mais não seja para dar continuidade ao abanão que nos faz andar para a frente.

    • Inês, eu não tinha mesmo intenção de discutir o filme pela simples razão de que (ainda) não o vi, mas não resisto a comentar o artigo que sugeriu (e que eu já conhecia): é uma das maiores armadilhas em que podemos cair a oposição entre caridade e martírio, ou a presunção de que o martírio poderia ser um ato de vanglória… Nessa ótica, Jesus devia ter saído da cruz como Lhe foi sugerido, pois Ele bem sabia que por causa da sua morte na cruz iriam perseguir até à morte o seu punhado de discípulos…
      Uma das muitas famílias santas que foi martirizada nessa época no Japão morreu com palavras que, nesta ótica deturpada, tão simpática a Satanás, poderiam parecer orgulhosas. Dizia S. Domingos Jorge, português, marido de Isabel e pai de um menino pequenino, no momento antes do seu martírio: “Fico mais feliz com esta sentença do que se me tivessem oferecido todo o Japão”. E dizia a sua esposa, martirizada com o seu filhinho dois anos mais tarde: “Ofereço de bom grado a Deus os dois bens mais preciosos que Ele me deu: a minha vida e a do meu filho.”
      Não estou a dizer que o filme não é bom, pelo contrário. Nem que não se pode perfeitamente entender e aceitar a apostasia num momento de fraqueza humana no limite. Quem sou eu para dizer que não apostatava sob tortura? Estou a comentar um artigo de opinião sobre o filme. Não: martírio e caridade não se podem opor. Nunca. Não vamos por aí! “Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos”. Ab

      • Ines Miranda Santos

        Não posso concordar mais sobre a não oposição, antes cumplicidade amorosa e amável, entre martírio e caridade; como avesso e direito. Não sou mãe, mas vejo isso em muitas mães; e imagino o que não vejo ou até o que parece ser o que não é na interioridade de cada servo de Deus. Daí a menção ao discernimento. São, numa mesma vida, apostasia e fidelidade até ao martírio necessariamente sempre? Veja-se Pedro e o seu todo.

        Abraço em X.

        • Então estamos de acordo! O artigo de opinião colocava essa questão, e parece que o filme também, com a suposta voz de Jesus, o que me levou a escrever o que escrevi. Quanto a Pedro, de facto, ele apostatou na terrível noite de quinta-feira santa. Mas depois deu a vida por Jesus, sendo crucificado de cabeça para baixo por não se achar digno da tremenda honra de morrer como o seu Mestre… A tal “honra” que sim, de facto, o é. Aliás, segundo ouvi em várias entrevistas e li em vários relatos sobre a situação do Japão da altura retratada no filme, muitos dos que apostataram em determinado momento, mais tarde foram martirizados. Como Pedro, sucumbiram num momento mas receberam a graça do martírio no momento seguinte… Bj

  6. Há dias que comentava algo do género… Mas eu tenho “fama” de ser “exageradaaa”. Obrigada Teresa pelo seu exagero 😂 eheh
    O Pe João Aguiar Campos diz “Andamos real e globalmente distraídos. Instalados na rotina, pensamos amar, quando a verdade é que nos limitamos a passar pela vida uns dos outros. Somos uma espécie de tangente humana na família, no emprego e na rua”
    Quando li isto…somos uma espécie de tangente humana… realmente..bem, lá está, são pontos de oração que às vezes surgem e que agradeço muito ao Senhor. Para evitar andar distraída desta realidade onde estou mergulhada e que me arrasta tantas vezes…

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