Em Caná da Galileia...


Sujos e felizes

No sábado, dia de S. Martinho, tivemos o nosso costumado magusto da comunidade salesiana: paróquia, colégio e todos os que se lhe quiseram associar. As Famílias de Caná quiseram! Começámos a tarde com a oração do Terço no Canto de Caná, esse lugar único no mundo onde cada vez apetece mais rezar:

Depois, castanhas para a fogueira!

Os jovens crismandos, orientados pelo Niall, tinham preparado uma série de jogos tradicionais, desde a procura de um rebuçado num balde de farinha às corridas com ovos, para fazerem com as crianças da escola e da catequese. Os jovens estavam prontos e cheios de entusiasmo. Mas faltava alguma coisa para os jogos terem sucesso: crianças. Onde estavam elas?

Estavam as crianças Power e as crianças das outras Famílias de Caná, bem como alguns filhos dos professores e dos catequistas. Fora disso, talvez não ultrapassassem os dedos de uma mão.

“Vamos aos jogos!” Decidiram os jovens, sem se dar por vencidos. As crianças que estavam, adoraram brincar; e quando já não havia mais, jogaram os jovens entre si. Que divertido foi!

À medida que as castanhas, quentinhas, iam saindo da fogueira, começava a parte mais esperada pelos Power e por alguns outros: a hora da sujidade! Era preciso que todos ficassem bem enfarruscados, ou não seria magusto.

Um dia de sol lindo, sem vento nem frio, uma quinta enorme para explorar, um lugar onde rezar, mesas de piquenique, professores e catequistas q.b. para acompanhar as crianças e as famílias… O que fará com que quase ninguém adira à festa?

“O magusto é obrigatório?” Perguntavam meninos na catequese, na semana anterior.

“Tenho muito que estudar”, diziam os mais velhos e alguns mais novos.

“Tenho treino sábados à tarde.”

“Tenho competição.”

Vivemos num tempo em que o gratuito deixou de ter qualquer importância. Se não é obrigatório, se não oferece medalhas, se é “apenas” brincadeira, então o que vamos lá fazer? Brincar deixou de ser a atividade principal da infância para aparecer lá no fundo da lista de prioridades. Brincar em família, então, está completamente fora de moda: vamos ao magusto se ficarmos a cargo dos catequistas ou dos professores; vamos ao magusto, se formos apenas o pai com a filha, ou a mãe com o filho; encontramos mais tempo, hoje, para um convívio entre colegas de trabalho, do que um convívio entre famílias – inteiras – amigas. E que falta eles fazem!

Há ainda um outro fator a afastar as pessoas do magusto, e este fator é o que maior confusão me faz, porque é aquele que não consigo, mesmo, explicar: a sujidade. O magusto suja, sim, é um facto, e hoje, parece que poucos gostam de se sujar.

“É melhor não”, respondia-me um rapazinho a quem eu, toda enfarruscada, desafiava a que fosse enfarruscar a mãe. “Ela não ia gostar.”

“Não posso brincar na terra porque sujo a roupa”, dizem algumas amigas da Lúcia no recreio da escola primária. A Lúcia abre a boca de espanto, pois para ela, a grande vantagem desta escola sobre a anterior é precisamente não haver um pátio empedrado, mas um quintal com terra, árvores e muitas folhas caídas para brincar.

Num destes dias, a educadora da Sara enviou um recado para casa, pedindo um casaco que se pudesse sujar, para os meninos irem trabalhar na horta.

“Não pode ser o casaco do costume?” Perguntei eu à educadora na manhã seguinte.

Ela sorriu e esclareceu: “A Sara é quem menos me preocupa. A questão é que a maior parte dos pais – a maior parte mesmo – não gosta de encontrar os filhos sujos quando os vem buscar ao fim do dia. Há pais que se queixam até porque o bibe fica sujo… Assim, eu prefiro avisar. E mesmo avisando, eu sei que há pais que não vão aceitar a ideia.”

É este fenómeno que eu não consigo explicar, e não consigo porque a geração que hoje não deixa os filhos brincar na terra é a mesma geração que, na infância, não fazia outra coisa. Onde foi que se quebrou a “tradição”? Como se pode criar um filho sem lhe permitir brincar com a terra, sujar a roupa, a cara, as mãos, a cabeça, criar caracóis ou bichos-da-conta nas gavetas da mesa-de-cabeceira, romper as calças, as meias e os sapatos, subir às árvores, fazer sopa de ervas daninhas no jardim, enfarruscar-se no magusto?

Ah, se eu mandasse um bocadinho para além da minha própria casa, fazia uma lei que dizia assim:

Toda a criança tem direito a sujar-se e a sujar-se muito. Todos os dias. Sem exceção. E um dos deveres das mães é lavar roupa. Muita roupa. Muuuuuuuuita roupa. Sem refilar. Todos os dias. Exceto, com alguma sorte, ao domingo 😉

8 Comments

  1. Helena Atalaia

    Tão, tão de acordo!!!! Costumo dizer, para sossegar algumas pessoas incrédulas com a minha permissão nessa área, que os meus filhos são ciganitos ou galinhas do campo 😂 Como é possível crescer feliz sem liberdade de explorar a natureza e o movimento? Penso que a roupa da moda e ser limpinho e arranjadinho hoje é uma prioridade. Essa aversão à sujidade pode ser uma reação a não estragar e sujar a roupa cara ou bonita. Um dos ensinamentos que a minha mãe me deu toda a vida, é que objetos por mais caros ou bonitos só fazem sentido para usarmos, para nos servirmos deles e não o contrário! Assim, sujar aquele vestido especial pode mesmo acontecer muitas vezes…e eu às vezes suspiro … mas a verdade é que mesmo com nódoas que não saem ele continua a ser o vestido especial com marcas de ser usado e tantas vezes tão bem usado. E tenho roupa tão encardida da terra do quintal … essa tento que seja a mais velha e usada porque literalmente a mais pequena enterra-se. Ela diz que está a fazer a horta mas tenho ideia que ela pensa que é uma couve! 😉 Bjs

  2. Também eu: tão, tão de acordo!!!!
    Não sabia que essa “moda” tinha chegado a Portugal, pensava que era só aqui na Alemanha…
    Quando a minha filha andava no infantário (e olha que era com sistema Montessori, onde as crianças vão todos os dias para o pátio/recreio, faça sol ou caia chuva/neve, só quando há trovoada é que não), havia pais que mandavam os miúdos para o infantário vestidos com roupa branca e “exigiam” às educadoras que os filhos não se sujassem ou reclamavam quando os iam buscar e a roupa branca estava suja de comida ou de lama….!!!
    Deus sabe quantas toneladas de areia eu despejava todos os dias dos sapatos, das meias, dos bolsos das calças e dos casacos da minha garota!
    Quando ela vestia alguma roupa nova ou estreava sapatos, ao fim do dia parecia uma cigana. Mas uma cigana feliz!!!!
    Eu também sou da geração que passava todo o tempo livre a brincar no mato, nos pinheiros, na lama, na areia. E que bom que era!
    A minha política em relação aos miúdos e à sujidade é que, se não se pode sujar ou estragar, não vale a pena vestir ou calçar. O meu lema sempre foi “Kinder sind abwaschbar” (é difícil traduzir à letra mas significa que as crianças são “laváveis”).

    Uma coisa que me faz muita confusão quando estou em Portugal e vejo miúdos na missa é que eles estão vestidos como se fossem uns príncipes numa recepção a um chefe de estado. A minha filha, em comparação, vai com uma roupa normal e parece uma ciganita, porque o cabelo está todo despenteado, a roupa tem nódoas que já não saiem, os sapatos estão desgastados… mas a garota é feliz!

    Deixem os miúdos brincar, rir, sujar-se… ser felizes!!!!

  3. É tão verdade, mas na minha zona Oeiras, noto que já se vê muitos pais a incentivarem mesmo os filhos a sujarem se. Se calhar porque não tiveram esse privilégio na infância.
    E como menciona Teresa A.,sinto o mesmo crianças e adultos vestidos de “cerimônia”, não que a missa não seja um momento tão especial, mas para tal é preciso preocupar excessivamente com a aparência? Ou antes irmos de alma e coração ouvir a palavra do Senhor?

  4. Minhas queridas amigas, entre a missa e um magusto, ou entre a missa e o pátio da escola, há alguma diferença 🙂 Não quero passar a ideia de que não é importante cuidar da beleza e da limpeza, especialmente quando estamos diante do Senhor! Neste post, referia-me concretamente aos dias “feriais”, não ao “Dia do Senhor”. E esses “dias feriais” são ótimos para… sujar!!! Bjs à Teresa e à Marta, que nos vieram visitar no Canto de Caná e de quem já temos saudades!

  5. E o que as minhas filhas gostam de subir às árvores, muros, etc… Eu também o fazia e hoje já não consigo porque “ganhei” vertigens… Penso que isso também as ensina a compreender as suas próprias limitações… se subo mais alto já não consigo descer sozinha, etc…
    O Domingo é o único dia em que ainda mando alguma coisa na roupa que vestem, aproveito para usarem os vestidos e roupa mais formal que passa a semana no roupeiro.
    Bem hajam pelos vossos testemunhos.
    Sara Grilo

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