Em Caná da Galileia...


Vender os rebanhos

“Mãe, a minha amiga disse que a mãe não atendeu o teu telefonema porque não ouviu o telemóvel tocar.”

“Perguntaste-lhe, foi? Eu toquei muitas vezes!”

“Sim, mas ela disse que a mãe estava a ver televisão, e o som devia estar alto…” A Lúcia deu uma gargalhada.

“Estás a rir porquê?” Perguntei, surpreendida. Pensei encontrá-la triste por a amiguinha não ter conseguido vir a nossa casa no domingo à tarde. Mas a Lúcia achara graça a outra coisa:

“É que eu não sabia que as mães também viam televisão!”

Uma das perguntas mais frequentes que as pessoas fazem, quando vamos a algum lado testemunhar, é sobre o tempo: “Como é que têm tempo para viver a fé assim?” Eu respondo sempre que nunca sentimos falta de tempo, e que temos tempo para tudo.

Até que de repente vem um comentário como este da Lúcia, e eu sou obrigada a reformular a minha resposta: na verdade, não temos tempo para imensa coisa. Quando o Francisco e a Clarinha eram pequenos, havia programas da televisão que eu não dispensava, e sobrava-me sempre algum tempo por semana para ir ao café conversar um bocadinho. E ambas as atividades me davam imenso prazer. Agora não tenho tempo para elas, e o engraçado é que… deixei de precisar delas. Não me fazem falta, nem me agradaria voltar a ter tempo para lhes dedicar.

Uma das coisas que me marcou ao ler as Memórias da Irmã Lúcia foi esta:

A partir das aparições, uma das minhas irmãs não fazia quase outra coisa mais que ir-me chamar e ficar em meu lugar pastoreando o nosso rebanho, para eu vir falar às pessoas que pediam para me ver e falar. Esta perca de tempo, para uma família rica, não seria nada; mas para nós, que tínhamos de viver do nosso trabalho, era alguma coisa. Minha mãe viu-se, por este motivo, obrigada, passado não muito tempo, a vender o nosso rebanho que fez, ao sustento da família, não pouca falta. (Segunda Memória, 13.)

Ovelhinhas, hoje, na casa da Irmã Lúcia, Fátima

Ovelhinhas, hoje, na casa da Irmã Lúcia, Fátima

Quando o Niall e eu comprámos esta casinha onde agora vivemos, tínhamos um sonho: viver uma vida tranquila e pacata de aldeia, articulando a nossa vida profissional com o serviço na paróquia e com o cultivo de uma horta e a criação de alguns animais, para que os nossos filhos pudessem crescer em íntimo contacto com a natureza. Planeávamos passar as tardes de sábado e de domingo a tratar do jardim, ou a dar passeios em família. Nunca nos atraiu viajar pelo país ou pelo estrangeiro, e nunca gostámos de multidões ou de reuniões. Assim, sempre as evitámos, mesmo no trabalho paroquial.

Mas de repente, veio o chamamento de Deus para fundarmos as Famílias de Caná. Quem já se sentiu chamado por Deus a alguma missão especial, conhece a sensação: é um chamamento insistente, constante, inquietante, que mói, que desinstala, que incomoda – e que enche de alegria! Pouco a pouco, as coisas que nos dão prazer surgem quase como um estorvo, enquanto essa voz poderosa ressoa com urgência em todos os cantos da nossa vida: “Vais recusar-me o que te peço? Vais dizer-me que não?”

Dissemos que sim. E o vendaval do Espírito Santo pôs tudo em desalinho. Nós não tínhamos rebanhos para vender, mas tínhamos uma extensa zona de conforto a que precisámos de renunciar. “Olha-me para esta desgraça!” Suspira o Niall aos fins-de-semana, ao contemplar o jardim necessitado de poda e cuidados. A horta, há quase um ano que é um amontoado de ervas daninhas, e o galinheiro está desabitado desde as fortes chuvadas do inverno passado. Infelizmente, os gatos não se aperceberam da nossa falta de tempo para as criaturas de Deus, e continuam a reproduzir-se a um ritmo alucinante… Se quiserem algum, é só pedir! Reuniões, pequenas multidões, viagens quase todos os fins-de-semana, o jardim reduzido a um relvado para os meninos brincarem, a televisão desligada.

Valerá a pena, “vender os rebanhos”? Valerá a pena este sentido de urgência, esta pressa em anunciar o Reino de Deus, deixando tanto para trás? Ah, se vale! Acima de tudo, porque nos tornamos instrumentos do sonho de Deus, servos do Senhor como Maria, José,os apóstolos e todos os discípulos desde o início do cristianismo até hoje. Mas a verdade é que também a nossa família fica a ganhar, pois Deus dá sempre a cem por um, premiando com a sua generosidade divina a nossa fraca entrega:

Nunca nos falta tempo para estarmos os oito juntos, para trocar confidências, para abraçar os meninos no sofá em frente da lareira, para conversar longamente pela noite dentro, o Niall e eu, quando já todos dormem. As viagens de carro para os mais variados pontos do país transformaram-se em tempo de família por excelência, recheado de gargalhadas e partilhas. De entre as pequenas multidões que vamos encontrando, surgem amigos dos melhores que há. Não os trocava por todo o sossego deste mundo! Os nossos filhos crescem com um conhecimento do país que nada tem de turístico, pois é feito a partir das amizades que vamos estabelecendo.

Foi preciso “vender os rebanhos” para experimentar o que Jesus disse aos discípulos:

Todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos…

(todo aquele que tiver deixado sonhos, planos, o conforto do sofá, as horas diante do televisor…)

… por causa do meu nome e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, no tempo presente, em casas, irmãos, irmãs, pais, mães, filhos e campos, juntamente com perseguições, e no tempo futuro, a vida eterna. (Mc 10, 29-30)

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Ámen!

2 Comments

  1. Vera Rodrigues

    Concordo! É impressionante ver que os nossos planos nada são quando comparados com os Deus, mas que são os Dele que nos fazem mais felizes.

  2. Nem consigo exprimir em palavras o bem que me fazem os teus posts!

    Tenho saudades… quero mais!!!

    Beijinhos

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