Testemunhos


Das aulas de Inglês às Famílias de Caná

Testemunho da Sofia Neves

Conheci a Teresa no meu 9º ano. Foi a minha professora de inglês nesse ano e a melhor professora que alguma vez tive. A turma não era fácil, apesar de ter bons conhecimentos e estar, de um modo geral, bem preparada. O comportamento era péssimo. Era o primeiro ano que a Teresa lecionava e todos os alunos o sabiam. Imagino que ao início tenha sido muito difícil, havia muito barulho, muitos tentavam desestabilizar a aula. Mas já na altura a Teresa era especial e carismática, soube dar-nos a volta de uma forma muito simples.

Um dia, levou um texto em inglês escrito por ela. Estava muito séria, ao contrário do que era habitual, pouco sorridente. Distribuiu as folhas por todos e mandou-nos ler. Um silêncio desconfortável instalou-se na sala: o texto era uma carta que a Teresa escrevera ao pai. Ele já tinha falecido mas ela gostava de lhe escrever e partilhar o que ia acontecendo. Nessa carta, descrevia a sua tristeza e decepção por a sua primeira turma não ser colaborante. Gostaria de ser uma professora diferente, com métodos de ensino agradáveis e pedagógicos mas, com tais comportamentos, teria que mudar a estratégia, ser dura, marcar faltas e mandar para a rua os “mal-comportados”, limitar-se a seguir o livro e a fazer exercícios de gramática.

Este texto teve o efeito desejado e partir daí passou a haver mais atenção na sala. Não me recordo se os comportamentos foram sempre exemplares mas lembro-me de muitos textos poéticos e maravilhosos que estudámos, muitos trabalhos de grupo sobre questões fantásticas que nos punham a pensar no que queríamos para o futuro, muitas composições sobre temas que nos entusiasmavam. Houve aulas em que vimos partes de filmes que eram totalmente desconhecidos para nós com o intuito de aprender algumas estruturas gramaticais, como o filme “Um violinista no telhado”. Lembro-me por ser um clássico do cinema, muito pouco “moderno” e apelativo para as modas dos anos 90, mas a turma gostou. Houve aulas em que a Teresa levou a viola e cantámos, como na última aula antes do Natal. Aprendemos de cor várias Christmas Carols à conta dessa aula. E outras inesquecíveis como a aula do último teste em que o texto para interpretar tinha sido escrito pela própria Teresa e recordava os momentos mais emocionantes do ano lectivo. Ao ler o texto tão belo, a emoção foi tanta que mal conseguia começar a escrever e responder às perguntas.

Paralelamente a toda esta metodologia de ensino tão diferente e inovadora, a Teresa tinha especial gosto em conhecer-nos e conversar connosco. Perdeu muitos intervalos a falar com os seus alunos sobre tantas coisas… Foi um ano lectivo muito importante para todos nós. Em plena adolescência, estávamos a descobrir-nos e penso que, pelo menos no meu caso, uma boa parte de quem hoje sou começou ali. Fazíamos orientação vocacional com a psicóloga da escola, tínhamos que pensar sobre o que queríamos fazer no futuro, que profissão gostaríamos de ter, que área iríamos escolher. Havia tantas questões dentro de nós: o futuro estendia-se à nossa frente e parecia tão promissor e excitante. Aprendi, contudo, que seria como uma curva na estrada da vida: não sabemos o que está para lá da curva, mas podemos ter esperança. Não podia deixar de piscar um olho a um dos livros que li nesse ano emprestado pela Teresa, “Ana dos Cabelos Ruivos”. Para além deste, li muitos outros, em inglês e português, que nunca teriam chegado às minhas mãos se não fosse a Teresa e que tanto marcaram o meu pensamento. Estávamos em 1996, não havia internet (!), não era fácil chegar a alguns autores nessa altura, sobretudo escritos em inglês e em Portugal.

 Quando o ano lectivo terminou, a Teresa casou-se com o Niall e mudou-se para Aveiro. Vieram anos de longas cartas e algumas visitas a Aveiro e à Gafanha. E depois a vida foi avançando com a faculdade, mudanças de curso e de cidade e regressos, um ano de Erasmus, etc. Durante estes anos, fomos mantendo algum contacto por escrito. Vim a reencontrar a Teresa nas circunstâncias mais tristes, no meu último ano de faculdade, no meu estágio de medicina no Hospital Pediátrico de Coimbra, quando o Tomás foi internado. E depois, mais tarde, por email e pelo blog até ir com a minha família a um retiro.

Nas cartas trocadas ao longo desses primeiros anos, as questões da fé começaram naturalmente a surgir. Foi tão importante para mim encontrar uma pessoa adulta que tinha uma fé tão sólida, que não se tinha afastado da Igreja e tão rica espiritualmente. Por outro lado, a Teresa manteve-se sempre com um coração de jovem, de adolescente, não se transformou numa desencantada da vida, como na altura tantos adultos me pareciam ser. Era assim que eu queria ser quando crescesse. E esta influência marcou muitas escolhas que fiz e moldou de uma forma muito positiva a adulta que sou hoje.

Mais tarde na vida, a maternidade trouxe-me tantas dúvidas e receios, sentia-me perdida com tanta informação. Tal como já li noutros testemunhos, as Famílias de Caná trouxeram-nos, a mim e ao meu marido, outra forma de parentalidade com preocupações muito específicas pelas escolhas que fazemos e pelo tempo que dedicamos aos nossos filhos. Construímos um Canto de Oração na nossa casa e, nos seis meses que estivemos a viver na Alemanha, improvisámos outro lá. Estamos muito longe da rotina das famílias de Caná. Rezamos diariamente mas a nossa oração familiar é muito curta e simples e não inclui, para já, as leituras diárias. E depois há a missa dominical que tem sido muito difícil quer na assiduidade a quatro quer no seguimento da missa que é sempre muito atribulado. É como se dessemos três passos para a frente para logo a seguir dar dois para trás. Contudo, tentamos estar a caminho. A nossa vida seria muito diferente sem as Famílias de Caná.

8 Comments

  1. Pilar Pereira

    Sofia, muito obrigada pelo teu testemunho! Consigo imaginar perfeitamente as aulas e a “sorte” que deve ter sido ter uma professora como a Teresa.

  2. Querida Sofia, como podia eu esquecer aquele ano? Lembro-me do primeiríssimo dia, em que cheguei à porta da sala de aula com a chave na mão para a abrir, e escutei várias vozes: “Bom dia, ‘stora!” Então olhei em volta, para ver a quem se referiam eles, para depois concluir: esta sou eu! 🙂 Na verdade, eu tinha apenas mais dez anos do que vocês!
    Bem hajas depois pelo outro encontro, no Pediátrico. Foi uma surpresa tão grande, ver-te chegar àquela outra porta, a porta do quartinho do Tomás, e poder abraçar-te e chorar um bocadinho!
    Contamos contigo nas Famílias de Caná. Vai aparecendo nos encontros que vamos ter para o ano, e caminharemos juntas, como desde os teus quinze anos! Bjs!

  3. Olívia Batista

    Que belo testemunho!
    Recordo-me dos primeiros encontros e retiros onde ouvi parte destes episódios contados com emoção pela Teresa, recordo-me de pensar nas voltas que a vida dá e no impacto que algumas pessoas têm na nossa vida. O testemunho da fé é de facto uma grande herança que alguém nos deixa e que nós podemos sempre deixar a alguém!

  4. Catarina Silva

    Tão bonito este testemunho! Obrigada Sofia por partilhar!
    É tão fácil imaginar a Teresa neste registo, nesta forma de amar os alunos que Deus lhe confiou…Como deve ter sido desafiante (quem sabe até desesperante :)) lidar com esta rebeldia toda ainda tão nova.
    Tal como diz a Olívia: A vida dá muitas voltas e há pessoas que transformam profundamente a vida daqueles com quem se cruzam. Sobretudo, pelo testemunho de fé e de amor que dão!

  5. Tenho um nó na garganta e lágrimas nos olhos….
    “(…)era uma carta que a Teresa escrevera ao pai. Ele já tinha falecido mas ela gostava de lhe escrever e partilhar o que ia acontecendo”…
    “Vim a reencontrar a Teresa nas circunstâncias mais tristes, (…) quando o Tomás foi internado”

    A Olívia e a Catarina já o disseram, mas eu tenho de corroborar: A vida dá muitas voltas e há pessoas que transformam profundamente a vida daqueles com quem se cruzam. Sobretudo, pelo testemunho de fé e de amor que dão!

    Obrigada, Teresa!
    Obrigada, Sofia!!!!

  6. Que belo testemunho!!
    Também eu tive professores que me marcaram – embora nenhum ao ponto de me continuar a corresponder com ele nos anos subsequentes – e isso é, a meu ver, um dos grandes privilégios de ser professor. Assiste-me, porém, uma dúvida que talvez a Teresa possa ajudar a esclarecer: ainda é possível imprimir essas dinâmicas e ter uma relação mais próxima dos alunos nos dias de hoje? E será isso acessível a pessoas que, pela sua maneira de ser natural tenham dificuldade em impor-se (e penso especificamente na minha filha, que dentro de dois anos terá de escolher o curso, e que tem um talento inato para ensinar)? É que só ouço falar da indisciplina dos alunos, das turmas excessivamente grandes, dos programas demasiado longos, etc.
    Nota: não resisto a partilhar que a Teresa sempre me fez lembrar a “Maria” da Música no Coração (fisicamente e não só), filme cujas falas sei praticamente de cor. E ao ler sobre a carta que distribuiu pelos alunos lembrei-me da cena em que os meninos colocam um sapo no bolso da Maria e o que ela faz a seguir… nada como falar ao coração, mesmo que isso implique (naquela altura, tal como agora) o expor o que de mais profundo há dentro de si, como a Teresa tão corajosamente o faz.

    • Uma das canções que ensinei aos alunos naquele ano foi o Doe-Ray-Me do Música no Coração 🙂 E eles adoraram e cantaram comigo! Sim, é possível ter boas relações com os alunos. Geralmente, no sétimo ano preciso de ser mais séria e dura, no oitavo (mantendo a mesma turma) posso relaxar um pouco mais, começar a conversar com os alunos nos intervalos, partilhar um pouco de mim e da minha família, etc, e no nono ano somos amigos, conhecemos a forma de trabalhar uns dos outros, os defeitos e as virtudes uns dos outros, eles têm mais paciência comigo, eu com eles. Gosto muito de levar uma turma do sétimo ao nono ano! E sim, ficamos amigos! Para mim é um prazer ensinar estas turmas, as regulares. Já não tenho a mesma facilidade com as outras, com os percursos alternativos, que são capazes de me deitar abaixo em três tempos. Há contudo professores que têm imenso jeito para essas turmas, mas aí sim, convém ter “arcabouço” para eles 🙂
      Ser professor é muito, muito belo. Não há que ter medo! Eu não me imagino a fazer mais nada senão isso. Ensinar mantém-me bem focada na realidade das famílias, das crianças e dos adolescentes de cada geração, não me deixa cair em ilusões. É engraçado ver as modas a rodar, as canções, os tiques, os entusiasmos e os medos de cada geração, acompanhar tudo isto ano a ano, passo a passo. Gostava de ter possibilidades económicas para trabalhar a meio tempo, como aconteceu durante um ano; mas não para deixar a minha profissão! Bj e felicidades para a filha!

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