Reflexão da Sónia Santos
Privilégio de alguns? Não, com certeza. Antes Graça para todos.
Há uns dias li um artigo que alguém escreveu sobre os casamentos e os matrimónios e as suas nuances culturais a propósito do programa de televisão “casados à primeira vista”.
Naquela leitura diagonal detive-me no exemplo dos casamentos indianos aos quais o autor comparava o dito programa neste aspecto. Dizia o autor que nos casamentos modernos ocidentais a relação começa quente e vai arrefecendo ao longo dos anos, nos casamentos indianos, por outro lado, a relação começa fria e vai aquecendo.
De facto, num casamento como nós o conhecemos o encanto e calor são enormes logo à partida (entenda-se a partir do matrimónio). Pensa-se ter encontrado a pessoa perfeita com “matching” perfeito em todas as características essenciais e estamos convencidos de que isso basta. Nesta perspectiva pensa-se já ter arrancado perfeitos um para o outro, de outro modo não se chegaria a marcar casamento. Parece óbvio e normal.
Mas o contraditório disto é deslumbrante! Julgo que nós cristãos do século XXI teremos aqui alguma coisa para aprender. Um casamento que começa frio, ou seja, onde as pessoas mal se conhecem, não há expectativas e, ao mesmo tempo, espera-se o melhor, mas também se prepara para o pior de todos os cenários: “Que tipo de pessoa será?”. Diante daquela pessoa a quem me cabe amar e ser esposa tudo está por descobrir. A expectativa é talvez mais realista e a disposição é, de certeza, mais generosa.
Quanta generosidade não falta nos nossos corações hoje? Corações de pedra? Quanta disponibilidade e abertura para o que há-de vir temos nós? Quanto cuidado e ternura não nos falta ao receber diariamente o nosso esposo? Quanto engano e ingenuidade por se dar como adquirida e pronta uma pretensa perfeição quando o caminho ainda nem começou…
Conseguimos nós dizer realmente e de coração aberto e livre como na famosa e velha música dos Madredeus “haja o que houver eu estou aqui … espero por ti”?
Creio que só a partir da entrega e acolhimento total podemos alcançar na nossa vida a unidade que o sacramento do matrimónio nos concedeu: ser um só. No retiro de Advento a dimensão deste “ser um só” foi exposta de uma maneira impossível de ficar indiferente. O matrimónio olhado com toda a sua magnitude, com toda a sua força. Olhado à luz da relação de Deus com a humanidade. Desde os primeiros tempos com o casamento judeu onde também contemplámos este desconhecido mútuo entre os noivos e ao mesmo tempo toda a forma tão intensamente simbólica com que se preparavam para o enlace. “Aí vem o esposo”!
E depois a cereja no topo do bolo: Carlos e Zita são realmente uma luz para a igreja. Confesso aqui, como já o fizeram a Joana e o Luís, a comoção com que acompanhei aquele entrelaçar de beleza entre nós e o sonho de Deus.
Num destes dias ao sair do centro de saúde captou-nos a atenção uma estante com revistas. Na capa de uma delas lia-se a citação de uma cantora famosa “sentimo-nos cada vez mais um só”. Era capa de revista. O evangelho numa capa de revista cor-de-rosa! O João comentou: ” finalmente alguém diz publicamente alguma coisa de jeito sobre o seu casamento!”
Dentro da realidade de um casal cristão unido pelo matrimónio “ser um” não tem a ver com partilhar os mesmos gostos em tudo, pensar da mesma maneira em todos os assuntos, ter os mesmos hábitos, conhecimentos, experiências anteriores, etc, não tem a ver com nenhuma experiência sensorial e romântica. “Ser um” é assumir-se apenas completo quando unido ao outro, é a não possibilidade do tronco andar sem as pernas. Todos temos partes do corpo de que não gostamos e na mesma temos de conviver com elas. Podemos também recorrer à cirurgia (estética!) no casamento, se preciso for, para “cortar”, “alisar” o que é sinal de imperfeição, mas separar (divorciar) as partes, não torna o corpo melhor: nem mais bonito nem mais funcional.
Para um cristão a Graça infundida pelo sacramento do matrimónio torna aquele homem e aquela mulher num ser novo e único, “um só corpo e um só espírito”. A partir do momento em que se separam, é isso mesmo que acontece, a separação desse corpo e espírito novo. Como se daí em diante passasse a andar por aí, o tronco para um lado e as pernas para o outro, ou o braço esquerdo para norte e o direito para sul. Claro, não se trata de nenhum processo de construção, mas de destruição e caos em seu redor, como já se disse aqui num outro post.
Qual “pregadeira” de roupa partida com uma parte para um lado e outra para o outro, já não funciona nem serve para nada. Mas volta a funcionar se se conseguirem juntar novamente e isso só é possível através da mola. Aquele pedacinho de ferro que permite às partes manterem-se unidas, mas que, ao mesmo tempo permite, e proporciona o movimento com uma tensão sempre bem calculada. A mola, claro, é Deus, é a Graça do sacramento. Recordo o Pe Ricardo Neves, pároco do Estoril (já junto de Deus) na sua épica elaboração sobre a pregadeira e o matrimónio.
Certa vez numa conversa sobre o casamento e o entendimento entre o casal dizia-me uma colega: “não me venhas agora com aquela conversa dos cristãos, de que o casal é um só! Isso é de mais para mim e acho isso uma mentira porque há sempre coisas que são só da pessoa e de mais ninguém.”
Julgo que para se ser “um só” é necessário fazer morrer umas coisas e nascer outras. Não se trata de perder a identidade, trata-se de assumir a nova identidade que já existe pelo sacramento do matrimónio. Zita teve de fazer nascer coisas práticas em si para poder assumir com o marido a missão de imperadores, teve de aprender 6 línguas e tantas outras coisas, com certeza. Zita fez-se submissa, (esse excerto da carta aos Efésios que arrepia cabelos a tantas mulheres), colocou-se pronta para a missão que era a mesma, que era de ambos. Sob a mesma missão. Contava também a Teresa que ambos fizeram exercícios espirituais antes do casamento e no final Carlos foi ter com Zita e disse-lhe: “De hoje em diante vamos ajudar-nos um ao outro a chegar ao Céu.” Ambos submissos à missão maior da qual, no seu caso, o sacramento do matrimónio era a via: chegar ao Céu, à comunhão perfeita com Deus. Portanto, se como Zita a inteirar-se de tudo para poder ser imperatriz, ou como São Luís no casal Martin a aprender o ponto de Alençon (quando decresceu o negócio de relógios) para acompanhar e ajudar a sua esposa com as encomendas…não importa a forma, não importa muito o que morre e o que nasce, importa que caminhemos juntos, que tudo seja “nós”.
No que toca aos casais modernos que vejo por aí este ser “nós” falha até nas coisas mais práticas e comezinhas: “o meu carro e o teu carro, a minha conta bancária e a tua conta bancária, etc, etc”. Como é possível tamanha distância? O casal partilha o que tem de mais íntimo, o seu corpo, por exemplo, mas depois não partilha o mais material… Mas que, claro, expõe a pessoa a confiar plenamente, a fazer de tudo o que é seu, do outro também. Sem garantias, apenas porque se entrega e confia.
“Somos cada vez mais um só”. Cada vez mais … Foco esta intenção de continuidade, de perseverar, insistir e ter esperança! Pôr toda a nossa esperança no Senhor. A nossa vida não vale se não pelo amor e sacrifício com que a esperança é alimentada. A Deus nada é impossível.
“Nenhum matrimónio é impossível. Não, nunca fizemos tudo o que era possível”, porque não temos capacidade de alcançar todo o possível de ultrapassar, toda a capacidade do amor de Deus, por isso a seguir “ao já não aguento mais, já fiz de tudo”, há ainda muito a fazer”, (Retiro Advento). Há ainda muito a amar.
Dificil de entender ou aceitar assim puramente, assim apenas com os nossos olhos e critérios terrestres. Apenas possível de vislumbrar pelo que vamos conhecendo da vida de tantos santos, homens e mulheres como nós, (Doroty Day, por exemplo) mas que pela força da Graça e da oração, apenas desse modo, puderam alcançar o mandamento de Deus “amar o próximo como a si mesmo”.
Como diria o meu marido para tantos assuntos da nossa vida em que procuramos ver como os que fazem melhor do que nós conseguem ser e fazer um conjunto de coisas: “Se eles conseguem, nós também havemos de conseguir.”!
Maravilhosa reflexão Sónia, obrigada por a partilhares connosco!