Carta fundacional

A – FUNDAMENTOS

1 – UMA EXPERIÊNCIA DE VIDA FAMILIAR

As Famílias de Caná nasceram quando a Família Power sentiu o chamamento de Deus para partilhar com outras famílias a sua forma particular de ser Igreja Doméstica.

O Niall, nascido a 24 de dezembro de 1970, é irlandês, natural de Waterford, e sétimo de uma família de dez irmãos. Educado na fé católica, o Niall foi escuteiro e participou desde sempre na vida paroquial, em família. Durante a juventude, teve a graça de ir a Taizé, e durante o namoro com a Teresa, fez um Convívio Fraterno.

A Teresa, nascida a 3 de junho de 1972, a mais velha de três irmãs, é natural de Lisboa, Portugal, mas viveu e cresceu em Castelo Branco. Participou desde pequena, em família, nas atividades da sua paróquia. Na juventude, integrou o movimento juvenil Convívios Fraternos, participou em muitos encontros do Renovamento Carismático Católico e peregrinou a Taizé, a Lourdes e a Mejugorje.

O Niall e a Teresa conheceram-se na Alemanha em 1992, a meio dos seus cursos universitários, inseridos no projeto Erasmus de mobilidade de estudantes. Uniu-os desde o início a fé católica e um grande amor a Nossa Senhora, a quem se consagraram no dia do seu casamento, a 27 de julho de 1996, em Fátima.

Ambos exercem as suas profissões, o Niall na Universidade de Aveiro, a Teresa como professora de Inglês em Anadia.

Abertos à vida e ao amor, foram abençoados com sete filhos, tendo um deles partido para o céu com apenas um ano e meio de idade. São eles o Francisco, a Clara, o Tomás (falecido), o David, a Lúcia, o António e a Sara.

No início da sua vida de casados, viveram em Aveiro, e alguns anos depois, na Gafanha da Encarnação, participando na vida paroquial, crescendo na fé em família e construindo, pouco a pouco, filho a filho, os fundamentos da espiritualidade das Famílias de Caná.

No verão de 2007, passaram a residir em Mogofores, Anadia, onde se encontra o Santuário Nacional de Nossa Senhora Auxiliadora. O pároco, José Augusto Fernandes, salesiano, convidou-os a dar catequese e a orientar o coro infantojuvenil da paróquia. Visitando-os assiduamente, apercebeu-se da forma como a família rezava em conjunto e contava histórias da Bíblia e da vida dos santos, e desafiou a Teresa a partilhar com outras famílias esta sua experiência de fé familiar. Assim, a Teresa começou a dar testemunho em encontros para pais de crianças da catequese e a orientar retiros de preparação para os sacramentos, etc, enquanto o Niall se dedicou especialmente aos jovens. Os fundamentos das Famílias de Caná foram surgindo quase sem que a família disso se apercebesse.

2 – AS BODAS DE CANÁ

Um dia, finalmente, a Teresa e o Niall pediram ao seu pároco que os ajudasse a discernir aquilo que lhes parecia ser um chamamento de Deus: a fundação de um movimento que desafiasse a família inteira, e não apenas o casal, à santidade, de acordo com a espiritualidade que já viviam na sua casa. Entusiasmado, o padre José Fernandes mostrou-se imediatamente disponível para celebrar missa e confessar os participantes nos retiros que a família queria orientar.

A Teresa e o Niall queriam que o novo movimento fosse confiado a Maria, a Senhora Auxiliadora venerada no Santuário de Mogofores. Foi então preciso invocar o Espírito Santo e percorrer os Evangelhos em busca do episódio mariano mais adequado. Alguns dias depois, e enquanto rezavam por esta intenção, optaram pelo episódio das Bodas de Caná, que apresenta Maria como Auxiliadora de uma família nascente e impulsionadora da revelação de Jesus como o Filho de Deus.

A decisão pelo episódio evangélico enquadrador do movimento revelou-se verdadeiramente providencial, permitindo às intuições da Família Power ganhar raiz e desabrochar harmoniosamente. De facto, o episódio das Bodas de Caná oferece tantos níveis de leitura e meditação, que nenhuma família o poderá esgotar.

A um primeiro nível, a presença de Jesus nas bodas antecipa toda a força e beleza do sacramento do matrimónio e santifica esta família nascente. Mas o autor do quarto Evangelho, das Cartas e do Apocalipse aponta para um outro nível de leitura, para outras bodas: as Bodas do Cordeiro (Ap 19, 9), anunciadas ao longo de toda a Bíblia, da primeira à última página. Nelas, Jesus é o Esposo, e cada um de nós e a Igreja inteira é a Esposa.

As Bodas de Caná são a celebração da família, que se abre ao amor infinito de Deus; mas são também a celebração do amor único e eterno entre Deus e cada um de nós.

Viver em clima de Bodas implica fazer da vida, e em especial, da vida familiar, uma festa divina, celebrando alegremente a amizade, a solidariedade, a partilha com toda a comunidade, como aconteceu em Caná; e convidando Maria e Jesus para a festa da família, desde o seu primeiro momento, sabendo que Maria sempre nos auxiliará nesta tarefa humilde e grandiosa de fazer tudo o que Jesus nos disser.

3 – PERCURSO

No dia 14 de setembro de 2013, Exaltação da Santa Cruz, aconteceu o primeiro retiro Famílias de Caná. Teve lugar, curiosamente, na casa que uns amigos costumam alugar precisamente para festas de casamento. As famílias participantes eram quase todas famílias amigas da família Power. O entusiasmo foi contagiante, e no retiro seguinte havia já mais famílias desafiadas a experimentar esta dinâmica de fé familiar.

Para que o seu testemunho de vida pudesse chegar mais longe, a Família Power criou o blogue Uma Família Católica, onde durante dois anos e meio partilhou o quotidiano da sua vida a partir da Palavra e sob o olhar de Deus. O blogue foi uma porta aberta ao mundo, atraindo muitas famílias, de vários pontos do país, aos retiros Famílias de Caná, e permitindo que muitos sacerdotes tomassem contacto com o movimento.

No dia 21 de janeiro de 2015, a Família Power foi recebida no Paço Episcopal. D. António Moiteiro, bispo de Aveiro, tomava assim conhecimento da existência das Famílias de Caná e comprometia-se a acompanhar o movimento nascente, com a sua oração, a sua palavra e o seu discernimento. Na quaresma seguinte, orientou o retiro quaresmal do movimento a 7 de março, para grande alegria de todos. Aí propôs que os diversos pontos de espiritualidade do movimento fossem repartidos por seis talhas, como as talhas que havia em Caná. Entusiasmada, a família Power acolheu a proposta e dedicou-se imediatamente à tarefa de estruturar as Seis Bilhas de Caná.

Entretanto, a Família Power foi sendo convidada a dar testemunho em vários pontos do país. Deste testemunho, têm nascido muitas Famílias de Caná e algumas Aldeias de Caná, que por sua vez são berços fecundos de novas Famílias de Caná, através do seu testemunho e do seu entusiasmo.

4 – PERTENÇA AO MOVIMENTO FAMÍLIAS DE CANÁ

O caminho de pertença ao movimento é “o caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, (que) é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração (…)porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita.” (Amoris laetitia nº 296)

Os membros do movimento comprometem-se a buscar a santidade de acordo com o carisma das Famílias de Caná. Podem contudo encontrar-se em situações diferentes de vida pessoal ou familiar. Pertencem ou podem vir a pertencer ao movimento:

  1. a) Famílias que, por inteiro – pais e filhos em conjunto – se comprometem a viver de acordo com o carisma proposto. Nem todas estas famílias estão fundadas sobre o sacramento do matrimónio, mas todas precisam de sentir sede deste sacramento. Assim, há no movimento famílias de divorciados que vivem numa nova união e que correspondem ao perfil traçado pelo Papa Francisco em Amoris laetitia: “Uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas.” (nº 298)As famílias resultantes de uma união de facto, que não apresentem nenhum impedimento para a receção do sacramento do matrimónio, só poderão ser Famílias de Caná depois do seu matrimónio, pois a união de facto não sugere sede de vida sacramental. No entanto, o movimento pode e deve acompanhar estas famílias no sentido de provocar nelas a sede de Deus necessária para que também elas venham a beber do “vinho novo” de Jesus.
  2. b) Famílias em que apenas um dos cônjuges se deseja comprometer, dada a falta ou a imaturidade de fé do outro cônjuge. Recusar a pertença seria agravar a dor do cônjuge crente. Para estas famílias, são sempre atuais as palavras de S. Paulo: “O marido não crente é santificado pela mulher, e a mulher não crente é santificada pelo marido; de outro modo, os vossos filhos seriam impuros, quando na realidade, são santos.” (1Cor 7, 14)
  3. c) Famílias que vivem todo o tipo de situações problemáticas, como mães solteiras, pais cujos filhos abandonaram a fé, e outras, bastando que um dos membros da família se queira comprometer. O Papa Francisco foi movido pelo Espírito Santo a apresentar a Igreja como um “hospital de campanha”: “Essa é a missão da Igreja, que cura e cuida. Algumas vezes, eu falei da Igreja como um hospital de campanha. É verdade: quantas feridas há, quantas feridas! Quanta gente que tem necessidade de que suas feridas sejam curadas! Essa é a missão da Igreja: curar as feridas do coração, abrir portas, libertar e dizer que Deus é bom, que perdoa tudo, que é Pai, é terno e nos espera sempre”. (Homilia de 5-2-15) Esta imagem vem na mesma senda bíblica que apresenta Jerusalém como ruinas que o Senhor tem a alegria de reconstruir: “Ruinas de Jerusalém, irrompei em cânticos de alegria, porque o Senhor consola o seu povo!” (Is 52, 9) “As velhas ruinas serão restauradas, levantarão os antigos escombros, restaurarão as cidades destruídas!” (Is 61, 4)Jesus nasceu na gruta de Belém e transformou-a em lugar sagrado; em Caná, Jesus restaurou a fonte da alegria.

Numa belíssima homilia sobre o mistério das Bodas de Caná, o Papa Francisco fez algumas afirmações proféticas, referindo-se precisamente a estas famílias destruídas: “O melhor vinho ainda não chegou para aqueles que hoje veem desmoronar-se tudo. Murmurai isto até acreditá-lo: o melhor vinho ainda não veio. Murmurai-o cada um no seu coração: o melhor vinho ainda não veio. E sussurrai-o aos desesperados ou aos que desistiram do amor: Tende paciência, tende esperança, fazei como Maria, rezai, atuai, abri o coração porque o melhor dos vinhos vai chegar. Deus sempre Se aproxima das periferias de quantos ficaram sem vinho, daqueles que só têm desânimos para beber; Jesus sente-Se inclinado a desperdiçar o melhor dos vinhos com aqueles que, por uma razão ou outra, sentem que já se lhes romperam todas as talhas.” (Homilia de 6-7-2015)

  1. d) Jovens que, embora ainda não tenham constituído uma família e possam nem sequer vir a fazê-lo, encontram no carisma do movimento um caminho de santidade.
  2. e) Leigos consagrados que encontram no mistério de Caná um chamamento para servir as famílias, especialmente as famílias destruídas, segundo o carisma do movimento.
  3. f) Sacerdotes diocesanos que querem “beber das Seis Bilhas de Caná”.

B – CARISMA, ESPIRITUALIDADE E MISSÃO

1 – CARISMA

As Famílias de Caná aspiram à santidade, não apenas enquanto pessoas individuais, não apenas enquanto casais, mas sobretudo enquanto família. Este desejo de santidade familiar acontece em clima de Bodas, que no Evangelho de S. João representam o Banquete do Reino de Deus, a grande celebração do amor esponsal de Deus-connosco.

1a – A vida familiar e o Banquete do Reino

Ao longo de todo o Antigo Testamento, Deus celebra a sua aliança com o povo através de uma refeição festiva. Assim acontece com Abraão, Moisés e os profetas, e assim aparece descrito no Livro da Sabedoria. Quando chega Jesus, Deus torna-Se tão próximo, que esta refeição pode acontecer na casa de cada família. A primeira casa onde acontece é, naturalmente, a casa de Nazaré, onde Jesus partilha a sua refeição com Maria e José durante trinta longos anos. Em seguida, os evangelhos contam-nos como o Banquete do Reino acontece na casa dos noivos de Caná, na casa de Mateus, na casa de Zaqueu, na casa de Maria, Marta e Lázaro, na casa de Simão Pedro, na casa de Simão, o fariseu, torna-se Eucaristia na casa de Marcos, chamada de Cenáculo, e finalmente, na Casa de Emaús. Também os primeiros cristãos celebram a fé nas suas casas, ao ponto de S. Paulo, nas suas cartas, se dirigir “à igreja que se reúne em casa” (Rm 16, 5; 1Cor 16, 19; Col 4, 15; Fl 2) de determinadas famílias, igreja que partilha a refeição fraterna e a refeição eucarística.

As Famílias de Caná querem recuperar o sentido profundamente celebrativo da vida familiar, como sinal da aliança esponsal entre Deus e o seu povo. Assim, as Bodas de Caná acontecem na casa familiar, diariamente, e na igreja, ao domingo, na celebração da Eucaristia.

1b – A vida familiar e a unidade

Ao longo de todo o Antigo Testamento, a Aliança de Deus com o seu povo torna-se possível através do “sim” de diferentes famílias. De facto, na origem do povo de Deus não está apenas Abraão enquanto indivíduo, mas Abraão enquanto chefe de uma família, pois é com Sara, sua esposa, que ele parte para Canaã e é nela que se cumpre a promessa de um descendente. Séculos mais tarde, ao chegar a Canaã, Josué não proclamou a sua fé pessoal, mas a fé de toda a sua família, em cujo nome falou: “Eu e a minha família serviremos o Senhor” (Jos 24, 15). O “sim” de Maria precisou do “sim” de José para que Jesus vivesse, em família, entre nós. Os Atos dos Apóstolos descrevem a conversão de famílias inteiras, que recebem o batismo numa única celebração (cf. At 16, 33).

No mundo atual, a fé não parece ser geralmente capaz de congregar famílias inteiras. Acredita-se que cada membro deve ter o seu próprio sistema de crenças e escolhas sem interferir nos dos restantes membros da família e até o batismo dos bebés é adiado para que possam ser eles a escolher a sua fé mais tarde. A resposta de Josué, falando em nome da sua casa, ou a decisão dos primeiros convertidos ao cristianismo de fazer batizar toda a sua família de uma só vez, surgem aos olhos do mundo moderno como antiquadas e autoritárias.

As Famílias de Caná querem inserir-se na grande tradição bíblica e contrariar, assim, a dispersão familiar moderna. De acordo com o Concílio Vaticano II, elas querem ser pequenas Igrejas Domésticas (Lumen Gentium, 11: AAS 57), onde os filhos sejam educados desde o berço na fé católica, onde educar seja desafiar para a santidade e crescer seja uma aventura rumo ao Céu.

1c – Frutos do Espírito Santo

Neste contexto de Aliança, o Espírito Santo faz brotar alguns frutos específicos:

A alegria: as Famílias de Caná são muito alegres, exprimindo-se com cânticos e danças festivos, rezando com todo o corpo, celebrando a vida, a amizade, o amor, procurando multiplicar momentos de convívio familiar, de conversas amenas e de brincadeiras felizes. Quando o Senhor lhes permite partilhar a sua cruz, a alegria mistura-se com dor, mas não se transforma em desespero ou lamúria, antes se deixa impregnar de serenidade, pois o jugo do Senhor é suave e a sua carga leve (cf. Mt 11, 30)

A partilha familiar: nas Famílias de Caná, a família procura partilhar o mais possível o espaço e o tempo familiares, contrariando aquilo a que o Papa Francisco chamou de “individualismo pós-moderno e globalizado” (Evangelii gaudium, nº67). Assim, as Famílias de Caná encontram tempo e lugar, na sua casa, para partilhar conversas, brincadeiras e atividades, não permitindo que a televisão silencie a partilha da vida, nem que as atividades extracurriculares, de trabalho ou, inclusive, de apostolado impeçam o convívio familiar e a interajuda dos irmãos. Partindo do próprio significado da palavra Bodas, ou Banquete, e de toda a tradição bíblica, que culmina nas refeições festivas de Jesus, a hora da refeição familiar é absolutamente central, ocupando, a par da oração familiar, o “horário nobre” da família.

Simplicidade: as Bodas de Caná foram certamente bem diferentes da grande maioria das bodas atuais. O Papa Francisco refere-se a estas bodas modernas, na sua exortação Amoris laetitia, e faz um apelo aos noivos: “A preparação próxima do matrimónio tende a concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes que consomem tanto os recursos económicos como as energias e a alegria. Os noivos chegam desfalecidos e exaustos ao casamento, em vez de dedicarem o melhor das suas forças a preparar-se como casal para o grande passo que, juntos, vão dar. (…) Queridos noivos, tende a coragem de ser diferentes, não vos deixeis devorar pela sociedade do consumo e da aparência. O que importa é o amor que vos une, fortalecido e santificado pela graça. Vós sois capazes de optar por uma festa austera e simples, para colocar o amor acima de tudo.” (nº 212) As Famílias de Caná procuram recuperar o sentido bíblico das bodas, não apenas no início da sua vida familiar, como ao longo de todo o caminho, vivendo o seu amor familiar com muita simplicidade e, inclusive, austeridade, longe da mundanidade que infecta o mundo atual.

Generosidade: As Famílias de Caná procuram ser generosas com o Senhor, como Ele é generoso com elas, não permitindo que lhes falte o vinho novo na sua casa. Esta generosidade exprime-se, em primeiro lugar, no seio da própria família, que se abre à vida de acordo com a doutrina da Igreja expressa nas encíclicas e exortações  papais Humanae vitae, Familiaris consortio e Amoris laetitia; mas também se exprime na sua disponibilidade para servir, à imitação de Maria, a família alargada, a comunidade e a paróquia, os pobres, os abandonados, os excluídos, os amigos e os vizinhos, vivendo de portas e janelas abertas a todos e fazendo-se próxima de todos.

2 – ESPIRITUALIDADE

2a – Bilhas de barro em vez de talhas de pedra

Os servos de Caná ofereceram a Jesus, com a fé que Maria neles despertou, seis grandes talhas vazias. À Palavra de Jesus, encheram-nas com água. E foi então que o milagre aconteceu.

As Famílias de Caná não têm talhas de pedra, mas antes bilhas de barro. E porquê?

– Por uma questão de tamanho: as talhas de Caná podiam conter até cem litros de água; as bilhas que as Famílias de Caná apresentam ao Senhor são pequenas, para que todos, dos mais pequeninos aos mais velhos, as possam transportar. De facto, nas Famílias de Caná, as crianças têm o mesmo protagonismo que os adultos, partilhando o direito, que o batismo lhes confere, de estender as suas pequenas bilhas a Jesus.

– Por uma questão de material: as talhas de Caná eram de pedra, mas nós “transportamos este tesouro em vasos de barro” (2Cor 4, 7). Como simples pecadores, vivemos suspensos da misericórdia do Senhor, que faz maravilhas nos pequenos e nos humildes, “para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não nosso.” (2Cor 4, 7), tal como aconteceu em Caná.

Assim, cada Família de Caná oferece a Jesus seis pequenas “bilhas”, que procura esvaziar de tudo o que é mundano. À Palavra de Jesus enche-as de “água” até transbordarem, numa obediência pronta e generosa. Finalmente, experimenta a abundância do amor de Jesus, que por intercessão de Maria, não permitirá que o “vinho” da fé, da esperança e do amor acabe na sua casa.

2b – As seis bilhas

1 – Comunhão – Nós, Jesus

As Famílias de Caná procuram viver a alegria das “Bodas do Cordeiro” (Ap 19, 9), da “Nova Aliança” (Lc 22, 20), no concreto das suas vidas, construindo a comunhão entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos entre si, a família e a Igreja, cada um de nós e Jesus. Várias vezes por dia, para aprofundar este mistério de comunhão, rezam esta curta oração: “Nós, Jesus!”.

Inserem-se assim no grande mistério da fé, a que chamamos “a comunhão dos santos”, e que nos permite participar com os nossos pequenos esforços e sacrifícios na obra da Salvação de Jesus, segundo a Palavra de S. Paulo: “Alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja.” (Cl 1, 24) Cada pequeno sofrimento é uma gota de água lançada no cálice do Sangue de Jesus, como nos revela o mistério da Eucaristia, e como pré-anunciou o milagre de Caná.

2 – A Palavra de Deus

Em Caná, Maria disse aos serventes que fizessem tudo o que Jesus dissesse (cf. Jo 2, 5), apresentando assim Jesus como a Palavra de Deus feita carne (cf Jo 1, 14), que precisa de ser escutada e, depois, praticada. “A fé surge da pregação, e a pregação surge pela Palavra de Cristo” (Rm 10, 17), afirma S. Paulo. E o grande mandamento que Moisés dá aos pais crentes é este: “Trarás no teu coração todas as palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás muitas vezes a teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em casa ou andando pelos caminhos, quando te deitares ou te levantares. Hás de prendê-las á tua mão para servirem de sinal, e hás de escrevê-las no portão da tua casa.” (Deut 6, 6-9)

No início da caminhada de fé de uma família está, portanto, a Palavra de Deus, que é o próprio Senhor Jesus, e que nos chega através da Bíblia e do Magistério da Igreja. Educar os filhos na fé é proclamar junto deles a Palavra de Deus, meditando nas leituras da missa diária, contando aos mais novos histórias da Bíblia, narrando a vida dos santos, ensinando o catecismo, meditando nos ensinamentos papais, com destaque para o papa que, no concreto de cada época, conduz a Igreja. As crianças crescem assim na atitude de discípulo, exemplificada pelo jovem Samuel: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta.” (1 Sm 3, 9)

Porque a Palavra de Deus é o próprio Jesus Cristo, este tempo diário de proclamação e escuta da Palavra “centra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (Evangelii gaudium, nº 35), ou seja, “o amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado.” (Evangelii gaudium, nº 36).

2 – Vida sacramental

As Famílias de Caná procuram encontrar-se com Jesus através dos sacramentos:

O matrimónio

O matrimónio é o sacramento fundador da família, que o episódio das Bodas de Caná vem pré-anunciar. Segundo a doutrina da Igreja, e à luz do mistério de Caná, em que Jesus é simultaneamente o Sacerdote que transforma a água em vinho e o Esposo que já chegou, e em que as Bodas são simultaneamente humanas e divinas, o matrimónio cristão é “um grande mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja” (Ef 5, 32).

No contexto de João 2, o matrimónio é uma verdadeira festa divina, onde a abertura à graça e à vida se concretiza na abundância totalmente inusitada do “vinho melhor”. Assim, as exigências de fidelidade, indissolubilidade, abertura permanente à vida e unidade não são vividas como fardos, mas como dons. E segundo as belíssimas palavras do Papa Francisco, “cada matrimónio é uma história de salvação” (Amoris laetitia nº 220).

Nem todas as Famílias de Caná nasceram do sacramento do matrimónio. Contudo, todas o têm no seu horizonte como o mais belo sinal da entrega de Jesus por nós, na Cruz, onde se consumou a nova e eterna aliança.

O batismo, a confirmação e a eucaristia

O batismo é o sacramento que faz de nós filhos de Deus e irmãos uns dos outros. Uma família cristã é, em primeiro lugar, uma família de batizados, como os primeiros cristãos o testemunhavam ao administrar o batismo a famílias inteiras (Cf At 16, 33). As Famílias de Caná procuram batizar os seus filhos logo que possível, com a pressa característica de quem ama, a mesma pressa com que, mais tarde, pedem o sacramento da confirmação para os membros que alcançam a maturidade da fé. No clima de festa em que vivem, os aniversários do batismo e da confirmação de cada membro da família são motivo de celebração.

As Bodas de Caná pré-anunciam o mistério da Cruz, em que Jesus derramou  o seu Sangue como o “vinho melhor” guardado para o fim. A Eucaristia é o memorial e a atualização do mistério da Cruz e, portanto, também ela está pré-anunciada nas Bodas de Caná, em que todos beberam até à saciedade do vinho de Jesus, o vinho da nova e eterna aliança. É nesta Fonte de Vida (cf Jo 19, 34) que as Famílias de Caná enchem as suas “bilhas”.

As Famílias de Caná são famílias verdadeiramente eucarísticas. A missa dominical é o cume e o centro das suas vidas, e como tal, procuram prolonga-la sempre que possível em fortes momentos de adoração eucarística. Como sinal da alegria, da festa e da união presentes no mistério das Bodas de Caná, as Famílias de Caná procuram participar na missa dominical em família. Nem todos os membros da família podem comungar, mas todos, sem exceção, podem ser salvos pelo amor eucarístico de Jesus, como o centurião romano o foi: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo.” (Mt 8, 8)

A reconciliação

Para viver a união profunda uns com os outros e com Deus, preconizada no mistério das Bodas de Caná, é preciso um esforço contínuo de reconciliação, de pedido e de oferta de perdão. A confissão sacramental é, para as Famílias de Caná, a resposta à constatação de Nossa Senhora: “Eles não têm vinho”. Cada vez que o vinho acaba, as Famílias de Caná são convidadas a uma reconciliação sacramental com Deus e uns com os outros através do Sangue derramado de Jesus, o Vinho da nova e eterna Aliança (cf. Lc 22, 20).

As Famílias de Caná confessam-se com muita frequência, incluindo as crianças, desde o primeiro momento em que tomam consciência do seu pecado. Mesmo o casal que não possa receber a absolvição sacramental é convidado a confessar os seus pecados, consciente de que a humildade é a porta do Céu.

A Santa Unção

De acordo com a doutrina da Igreja, as Famílias de Caná procuram receber o sacramento da Santa Unção sempre que necessário, quando um dos seus membros se encontra gravemente doente ou quando se aproxima a hora da sua morte. Também esta receção acontece no clima das Bodas de Caná: total confiança em Deus, que dá a vida e dá a morte, que faz milagres e a quem nada é impossível; alegre esperança de, finalmente, se reunir com o único Esposo que pode preencher os mais profundos anseios de felicidade do ser humano.

A ordem

Nas Bodas de Caná, Jesus é o Sacerdote que transforma a água em vinho. Não há Famílias de Caná sem sacerdotes, ministros da nova e eterna Aliança (cf. Lc 22, 20). Assim, as Famílias de Caná procuram ser verdadeira família para o seu pároco, acolhendo-o e colocando-se ao seu serviço, disponíveis para fazer tudo o que ele disser, enquanto seja intérprete da vontade de Deus.

As Famílias de Caná rezam ao Senhor da messe para que envie operários para a sua messe (cf. Mt 9, 38) e alegram-se quando o Senhor vem chamar à sua casa religiosos, religiosas e sacerdotes. Uma vocação sacerdotal ou de consagração na família é o maior dom que o Senhor lhes pode fazer.

3 – Oração familiar

3a – O Canto de Oração familiar

As Famílias de Caná constroem, num lugar central das suas casas, um Canto de Oração Familiar, onde se reúnem uma vez por dia, dedicando ao Senhor o “horário nobre” da sua vida familiar.

Porque o Canto de Oração deve congregar a família inteira, dos mais pequeninos aos mais velhos, ele deverá ser atraente, belo, sugestivo, de acordo com a sensibilidade estética e religiosa de todos os membros da família. Deve também acompanhar o ritmo do ano litúrgico, com criatividade e simplicidade, permitindo à família rezar com a Igreja Universal.

No Canto de Oração, a família reza unida e os pais evangelizam os seus filhos, a partir da Palavra de Deus, manifestada na Bíblia e no Magistério da Igreja. A própria preparação do Canto de Oração no início de cada tempo litúrgico é em si mesma uma bela catequese, que envolve os sentidos, a inteligência e o coração.

3b – A oração familiar

A oração familiar deve conter elementos de louvor, gratidão, súplica, intercessão, pedido de perdão, reconciliação. Deve conter momentos de silêncio, de palavra, de escuta, de partilha, de canto e, até, de dança. Não deverá ser complicada nem demasiado solene, para não quebrar, antes realçar a intimidade e o aconchego familiares. Diz-nos a Bíblia que Moisés “falava com Deus como um amigo com o seu amigo” (Ex 33, 11), e assim queremos nós também rezar.

A oração diária começa com a afirmação do primado de Deus, que se revela no amor ao próximo:

Shemá

“Escuta Israel

O Senhor nosso Deus é o único Senhor.

Amarás o Senhor com todo o teu coração

Com toda a tua alma e com todas as tuas forças

E amarás o próximo como a ti mesmo.

Faz isto e serás feliz.

Ámen!” (Lc 10, 27-28)

3c – O Rosário

Na Carta Apostólica O Rosário da Virgem Maria, S. João Paulo II recorda o episódio das Bodas de Caná, em que Maria assume o papel de mestra, “quando exorta os servos a cumprirem as disposições de Cristo” (nº14). Assim, conclui o papa, “percorrer com Ela as cenas do Rosário é como frequentar a «escola» de Maria para ler Cristo, penetrar nos seus segredos, compreender a sua mensagem” (nº14).

Como os servos em Caná, também as Famílias de Caná querem ter Maria por mestra, aprendendo com Ela a meditar em toda a vida de Jesus, rezando em família alguma parte do Rosário todos os dias. Esta oração é tão apropriada a adultos como a crianças, segundo a nossa mestra nos ensinou em Fátima, ao pedir aos pastorinhos, com sete, nove e doze anos, que rezassem o terço todos os dias.

Os mistérios do Rosário são, na verdade, a forma mais simples de contar às crianças a história do Evangelho. Uma família que reza o terço todos os dias percorre, no espaço de uma semana, os mais importantes episódios do Evangelho, crescendo assim em gratidão e contemplação diante de um Deus que por nós se faz bebé, criança, adulto, por nós se entrega até à morte, por nós ressuscita e a nós abre as portas do Céu. A partir da meditação dos mistérios do Rosário, ensina-se e aprende-se o catecismo e descobrem-se as riquezas infinitas do Evangelho. Como Maria, também a família que reza o terço diariamente “conserva todas estas coisas, ponderando-as no seu coração” (cf. Lc 2, 19).

5 – O serviço à família

Como Maria em Caná, as Famílias de Caná procuram estar muito atentas às necessidades materiais e espirituais das famílias que as rodeiam. Discernindo as situações de urgência em que “acabou o vinho”, as Famílias de Caná tornam-se “pessoas-cântaro” (Evangelii gaudium, nº86), oferecendo a todos o “vinho novo” de Jesus.

Assim, encontramos Famílias de Caná a trabalhar nas paróquias, nos mais diversos ministérios; a auxiliar ordens religiosas de vida ativa no trabalho com os pobres e as crianças; a trabalhar na política, nos movimentos pró-vida e em todos os campos de apostolado laico; a servir os vizinhos e os amigos em todas as áreas da vida pessoal, familiar e social.

6 – A Consagração a Nossa Senhora

Nas Bodas de Caná, Maria antecipou a hora de Jesus; mas antecipou também a sua hora como Aquela que intercede por nós junto de Deus. A Mãe de Caná é assim, nos Evangelhos, a imagem mais perfeita da Senhora Auxiliadora dos cristãos.

As Famílias de Caná nasceram à sombra do Santuário Nacional de Nossa Senhora Auxiliadora, em Mogofores, e têm na Mãe de Caná a sua Rainha.

As Famílias de Caná renovam diariamente a sua consagração a Maria. Como filhos que se entregam aos cuidados e à ternura da Mãe, antes disso terem sequer consciência, também os membros das Famílias de Caná se consagram sem necessidade de qualquer preparação prévia que não a confiança absoluta em Nossa Senhora e o amor incondicional por Ela.

Invocação

“Nossa Senhora Auxiliadora, Mãe de Caná,

ensina-nos a fazer tudo o que Jesus nos disser!”

 

Consagração

“Nossa Senhora Auxiliadora, Mãe de Caná,

Consagramos-te hoje e sempre a nossa família.

Confiamos na tua intercessão de mãe,

Para que o vinho da fé, da esperança e do amor

Nunca acabe em nossa casa.

Faz de nós servos do Senhor, como tu,

E ensina-nos a fazer tudo o que Jesus nos disser.

Ámen!”

 

3 – MISSÃO

3ª – Mensageiros da alegria

A missão das Famílias de Caná consiste em levar a alegria das Bodas de Caná ao maior número de famílias possível, de acordo com a Palavra do Evangelho: “Ide, pois, às encruzilhadas dos caminhos e chamai para as bodas a quantos encontrardes.” (Mt 22, 9)

De facto, a insistência na dinâmica de oração familiar e de vida sacramental em família só aparentemente parece fechar a família sobre si mesma, pois na verdade, o que faz é precisamente o contrário. Diz o Papa Francisco em Amoris laetitia: “O exercício de transmitir aos filhos a fé, no sentido de facilitar a sua expressão e crescimento, permite que a família se torne evangelizadora e, espontaneamente, comece a transmiti-la a todos os que se aproximam dela e mesmo fora do próprio ambiente familiar. Os filhos que crescem em famílias missionárias frequentemente tornam-se missionários.” (nº 289)

3b – Os dois apelos do papa

O movimento das Famílias de Caná procura responder aos apelos insistentes do Papa Francisco, expressos quer em Evangelii gaudium, quer em Amoris laetitia, e que são especialmente dois:

– Ser “Igreja em Saída”, capaz de “alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (AE, nº20), especialmente periferias relacionadas com a família, e que tanto existem no meio da pobreza material, como sobretudo da pobreza espiritual do mundo ocidental. Ninguém deve ficar fora das bodas!

– Privilegiar o Querigma, o anúncio de Jesus Cristo Salvador, anúncio que deve preceder e acompanhar toda a catequese doutrinal. Diz o Papa Francisco: “Ao designar-se como «primeiro» este anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, de uma forma ou de outra, durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos.” (AE nº 164)

3c – Concretização da missão

O contexto das Bodas, que no tempo de Jesus congregavam uma aldeia inteira, fornece aos membros do movimento indicações preciosas sobre a sua forma carismática de responder a estes apelos:

– A missão deve ter uma vertente própria de cada pessoa ou família, que à imitação de Maria, responde com a sua iniciativa pessoal ou familiar à necessidade identificada, apresentando as famílias a Jesus e Jesus às famílias.

– A missão deve também ser uma missão “de aldeia”, como foi em Caná, em que os servos das bodas se apressaram a cumprir a Palavra de Jesus, servindo em conjunto o “vinho novo”. Surgem assim as Aldeias de Caná, pequenos grupos de pelo menos duas ou três Famílias de Caná que se reúnem, quer na paróquia, quer nas casas das várias famílias, abertos a quem neles quiser participar, para aprofundar a espiritualidade do movimento e encontrar formas de servir a comunidade em conjunto.