Em Caná da Galileia...


Onde mora o verdadeiro perigo?

Férias familiares no Gerês. Mais um longo e calmo dia passado na barragem de Vilarinho das Furnas, no alto da montanha. Geralmente, estamos sós. Mas neste dia em particular, vemos chegar um grupo grande de pessoas, aparentemente três famílias amigas entre si. As crianças correm para a água e, felizes, saltam e gritam de alegria, mergulhando e chapinhando.

Sentada na margem, cuidando das bonecas da Sara que estão a secar depois do banho (também sei cumprir ordens…), observo. E é então que vejo uma das mães levantar-se da sua toalha, pousar o telemóvel com que até essa altura se entretivera e dirigir-se à beira da lagoa. “Carolina, sai imediatamente da água”, diz. A filha, com cerca de dez anos, olha para a mãe abismada. “Não!” Grita. “Sais sim, porque vais ficar de castigo”, continua a mãe. Fico curiosa. Há cerca de meia hora que ali estou a observar os meus filhos, e não me tinha dado conta de alguma das crianças que entretanto chegara ter cometido um ato merecedor de castigo. Mas a mãe apressa-se a explicar: “Tinha-te dito para não ires tanto para a frente. Estás a ficar sem pé. Sai imediatamente da água e deita-te na toalha.” A criança grita e esbraceja o mais que pode, depois pontapeia o padrinho, que a agarra a pedido da mãe e que, finalmente, a retira da água. Por fim, deita-se na toalha e esconde a cara nos braços, chorando.

Infelizmente, cenas como esta são cada vez mais comuns. Na montanha como na praia, na escola como nos parques infantis, é cada vez mais frequente ver pais extremamente preocupados em controlar a atividade física dos seus filhos através de ordens cinicamente injustas.

À beira-mar, multiplicam-se as crianças que só têm autorização para molhar os pés, mesmo com a bandeira verde e o nadador-salvador sentado junto à rebentação das ondas. Outras precisam de esperar três horas para digerir um pequeno-almoço que engoliram em três minutos. Outras ainda são forçadas a sair do mar porque os pais acham que a água está fria, embora elas não se tenham queixado uma única vez e não sofram de qualquer problema de saúde impeditivo de mergulhos em água fria.

No parque infantil, há geralmente dois adultos a correr atrás de uma criança de cinco anos, sentada sobre a sua bicicleta com estabilizadores e com tantas proteções em todas as partes do corpo, que mais parece um pequeno astronauta. “Cuidado! Não caias!” Gritam ambos.

Subir às árvores? Este ano, na escola primária, tive de enfrentar várias auxiliares até obter permissão para os meus filhos subirem às magníficas árvores do recreio. “Subir às árvores é uma competência que se adquire na infância”, procurei explicar pacientemente. Por fim, obtive a dita permissão, quando as funcionárias constataram que as outras crianças não eram capazes de subir e, assim, não havia perigo de imitarem as minhas e se poderem magoar. Perto do final do ano letivo, enchi-me de alegre orgulho ao dar-me conta de que, ao contrário das previsões das auxiliares, mais crianças imitavam o António e a Lúcia, o que fazia com que o recreio parecesse uma turma de simpáticos macaquinhos empoleirados em ramos de castanheiro.

E que dizer da falta de brincadeira ao ar livre nos infantários? Há anos – desde que o Francisco era pequenino – que luto contra esta mania de manter os bebés e as crianças dentro de salas cheias de vírus, em vez de os deixar brincar ao ar livre. Ou faz frio, ou faz calor, ou faz vento, ou faz nevoeiro, mas a temperatura nunca está perfeita. “É a única mãe que se queixa da falta de ar livre”, dizem-me as sucessivas educadoras e auxiliares. “As outras queixar-se-iam se levássemos os meninos lá para fora com este tempo!”

Regras, regras, regras e mais regras quando se trata da segurança física dos menores. A brincadeira livre foi substituída por uma corrida às “atividades extra-curriculares”, ao desporto organizado, à procura de campos de férias e afins, onde as crianças fingem que são “radicais”. Não me interpretem mal: tenho o máximo apreço pelos Escuteiros e outros grupos semelhantes, os meus filhos praticam desporto escolar e as minhas filhas fazem ginástica artística. Mas não há atividade organizada capaz de substituir com vantagem a brincadeira livre das crianças no meio da natureza, sem intervenção (embora com supervisão) dos adultos.

O resultado, como as provas de aferição de expressão físico-motora do segundo ano de escolaridade este ano mostraram, é uma população infantil que não sabe brincar. Ou então, jovens adultos que perdem a vida a tirar “selfies” arriscadas no cimo de falésias, porque nunca aprenderam a calcular o perigo nas suas aventuras infantis.

Mas ao mesmo tempo que aumenta o número de pais que procura impedir os filhos de correr os riscos naturais da infância, diminui o número de pais que procura impedir os filhos de arriscar perder a vida eterna. Na verdade, uma exagerada preocupação com a segurança física coabita com uma falta de preocupação com a segurança espiritual.

Assim, são muitos os pais que não parecem encontrar qualquer perigo na visualização indiscriminada e contínua de programas televisivos (e um simples telejornal cheio de notícias bombásticas pode trazer tantos danos) ou na brincadeira – “sossegada e segura” – de jogos de tablet, telemóvel e computador. Pelo contrário: “Os meus filhos só sossegam quando estão a jogar”, dizem, aliviados.

E os mesmos pais que impedem os filhos de desafiar as leis da física nas suas explorações infantis, não parecem preocupados em impedi-los de desafiar as leis da educação, permitindo-lhes responder com altivez ao professor, usar linguagem imprópria dentro de casa ou desafiar uma ordem recebida.

As crianças precisam de uma boa dose de liberdade para crescerem em autonomia, criatividade e responsabilidade. Mas – que liberdade?

Cá em casa, há anos que a escolha foi feita. Os nossos filhos sabem que podem trepar as árvores que quiserem, mas não se podem levantar da mesa sem agradecer a refeição ao “cozinheiro de serviço”; podem ir de bicicleta para a escola (com capacete), mas não podem faltar ao respeito a um professor ou funcionário; podem tomar banho no mar à chuva, mas terão de obedecer à primeira chamada – vá lá, à terceira – quando a mãe ou o pai os mandarem estender a roupa, aspirar o quarto ou lavar a louça; podem escalar montanhas, mas não podem ver telenovelas nem jogar a maior parte dos jogos de computador que os seus amigos jogam.

Os nossos filhos acreditam que gozam de imensa liberdade, e nós, nós não estamos nada insatisfeitos com os resultados…

5 Comments

  1. Pilar Pereira

    Os meus filhos não sobem a árvores. Tenho realmente medo que se magoem. Acho que a principal razão é que eu nunca subi às árvores enquanto era pequena, não porque fosse impedida mas simplesmente porque nunca me senti atraída por essa atividade. Mas não costumo impedi-los. Acho que eles também não se sentem atraídos… Quanto à preocupação com a segurança espiritual, concordo que é fundamental!

  2. Os nossos filhos reflectem o modo como vivemos de um modo que me assusta, porque só o conhecia dos livros e quando me confronto com o espelho de mim, do outro lado da mesa, ainda me surpreendo. As regras ditas pesam muito menos do que as vividas… Infelizmente já temos os pais que foram criados em “aviários” a educarem e… eu penso que eles não sabem mais, ainda que conheçam imenso das regras, dos novos e dos antigos conceitos de qualidade educativa, não sabem mais e muito poucos reflectem, ou sequer pensam, em torno destas questões… poderia perder-me horas a deambular sobre isto! O meu grande medo de mãe foi sempre o adulto inesperado que os poderia magoar… tique profissional!!! Agora quedas e cortes, faz parte! Privilégio de quem só esteve no “aviário” a meio tempo, porque o “aviário” também é muito importante… Lembro o Santo Padre e o seu pedido de oração deste mês, que as famílias sejam consideradas como o maior tesouro da humanidade, porque o são!

  3. Onde mora o verdadeiro perigo? No desejo de bem-estar e sossego dos pais. A criança nao pode subir à árvore, ou arriscar um passo a cima ou à frente, em grande parte, para servir o sossego e o conforto do coração dos pais. São os pais que se sentem “sem pé” quando os filhos os obrigam a largar o seu cómodo sossego de banhos de sol. Isto é basicamente uma infantilidade. Os pais precisam de crescer e descentrar-se dos medos que são apenas seus, de calar os ímpetos de protecção que são, afinal, maioritariamente para sua própria segurança e descanso. E que escravidão que isso é… “Ai eu não aguento vê-lo a descer a escada sozinho”, “ai eu não posso, eu não consigo”, “ai que voltas o meu coração dá”… Que tristeza eu sinto sempre que percebo, numa pequena coisa que seja, que impedi os meus filhos de crescerem em autonomia, liberdade, audácia, confiança. Faço das tripas coração para que isso não aconteça, e o meu coração dá muitas voltas, dá… Mas enche-se de uma alegria imensa ao ver os frutos da liberdade, a deles e a minha…

  4. Boa tarde Teresa!
    Ontem à tarde fui para a praia sozinha com quatro crianças, duas filhas e dois sobrinhos, idades, 4, 8 e 10 anos.
    As vezes que me lembro de si nestas situações com a sua família numerosa…
    O que é verdade é que passei a maior parte do tempo sentada a vigiar as brincadeiras e claro que tive que intervir quando “estalavam” as picardias entre irmãs ou quando começavam a atirar areia ou incomodar as outras pessoas ou para distribuir o lanche…
    Ninguém pegou no telemóvel, nem eu, mas deu para adiantar umas carreiras no croché…
    Se fosse só com um deles concerteza passaria a tarde em “cima de mim”…
    Claro que é necessária uma grande dose de paciência e muita firmeza e acho claramente que é necessário um grande dom para se ser uma mãe numerosa…
    Bem haja por estes posts que nos chamam a atenção e fazem repensar a nossa atitude como pais.
    Boa semana e felicidades para o bebé!

    • Boa semana, Sara! Concordamos: mais filhos é mais fácil que menos 😉 Sara, seria tão bom se as famílias de Cadima viessem aos nossos retiros quando se proporcionasse. Vamos incentivar a isso? Bj!

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