Em Caná da Galileia...


Domingo XI do Tempo Comum, ano A

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

DEIXEMO-NOS OLHAR PELO SENHOR

Sobre o monte Sinai e sobre o monte da Galileia, sobre o monte da rotina e sobre o monte da paróquia, Deus chama, consagra e envia um povo no seu amor. É a mensagem deste domingo, no regresso ao tempo comum da Igreja, no regresso à quase-normalidade da nossa vida.

Libertado do domínio do faraó, o povo hebreu partiu em direção à montanha e acampou à sua beira. Seria aí que Deus lhes falaria, como prometera. “Moisés subiu à presença de Deus”, como intermediário entre Deus e o povo, e dispôs-se a escutar.

“Vistes o que Eu fiz no Egito”, recorda o Senhor. O Antigo Testamento está cheio desta chamada a fazer memória, a recordar com gratidão o que o Senhor fez por nós. Vivemos numa época em que tudo o que fazemos fica, de certa forma, registado em algum lugar, de uma rede social a uma câmara fotográfica. Mas há três mil anos, era preciso que cada um fizesse memória da ação salvífica de Deus no meio do povo e fosse capaz de transmitir fielmente aos seus filhos e aos seus netos. Nada devia ficar esquecido! Precisamos, também nós, recuperar esta necessidade de fazer memória no mais profundo de nós mesmos, de exprimir gratidão, de narrar as obras de Deus: “A sua fidelidade estende-se de geração em geração.” “Aclamai o Senhor, terra inteira!”

E que pede Deus a Moisés que recorde, que nunca esqueça? Pede-lhe que se lembre “como vos transportei sobre asas de águia e vos trouxe até Mim.” Que imagem tão ternurenta! As águias elevam-se majestosamente sobre as coisas terrenas, em voos certeiros e rápidos, o seu olhar potente centrado no essencial. Imaginemos, no seu dorso, a ninhada indefesa, bem escondida nas penas da mãe, confiando totalmente na sua liderança amorosa… Assim é a imagem de Deus que o Antigo Testamento nos oferece, e que tantas vezes ignoramos.

No Evangelho, a imagem da águia deixa de ser necessária, pois dá lugar à realidade: “Jesus, ao ver as multidões, encheu-Se de compaixão, porque andavam fatigadas e abatidas, como ovelhas sem pastor.” Já deixámos que o olhar de Jesus pousasse sobre nós com compaixão e nos desarmasse totalmente? Façamos memória, como pede o Senhor, destes momentos de graça, que talvez tenham acontecido num confessionário, ou quando reentrámos na nossa igreja paroquial, por estes dias… Estamos, alguns de nós, “como ovelhas sem pastor”, cansados, abatidos, confusos, irritadiços até. Estes tempos de isolamento social e privação eucarística por que passámos magoaram alguns de nós, sacerdotes e leigos, e fizeram-nos tomar consciência de que não adianta colocar a nossa esperança senão no Senhor. Só Ele tem aquele olhar de compaixão que faz tudo o resto parecer insignificante. Deixemo-nos olhar assim.

“Agora, se ouvirdes a minha voz, se guardardes a minha aliança, sereis minha propriedade especial entre todos os povos (…) um reino de sacerdotes, uma nação santa”, diz o Senhor ao povo hebreu, através de Moisés. E aos discípulos, Jesus diz: “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara.” Os cristãos, como outrora o povo hebreu, são chamados a uma missão: santificar-se e, pela santidade da sua vida, santificar “todos os povos”, “a seara”. Não fomos libertados para descansarmos no sopé da montanha; fomos libertados para libertar os irmãos. Deus não escolheu um povo porque o amasse mais do que aos outros, mas para que este povo O anunciasse a todos; Jesus não escolheu a Igreja porque amasse os cristãos mais do que os outros, mas para que a Igreja O anuncie a todos.

“Depois chamou a Si os seus Doze discípulos e deu-lhes poder…” Porque terá Jesus chamado estes doze, e não outros? Porque terá Deus chamado o povo hebreu, e não outro? A vocação não se explica, acolhe-se e aceita-se, sempre como missão. Eis a palavra-chave: missão. Se somos escolhidos, somos enviados.

É que amados, preferidos, privilegiados, isso somos todos, bons e maus. Bem o diz S. Paulo: “Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.” E explica: “Por um homem bom, talvez alguém tivesse a coragem de morrer…” Como é que Deus morreu, não pelos bons, mas por nós?! Da próxima vez que alguém nos insultar com um gesto obsceno por detrás do vidro do seu carro, ou nos ofender com um comentário racista; da próxima vez que alguém nos irritar terrivelmente pela sua falta de virtude ou de inteligência, fazendo-nos perder tempo e dinheiro, o bom nome e a honra; da próxima vez que alguém nos trair, amaldiçoar, abandonar, lembremo-nos que Cristo também amou essa pessoa, ao ponto de morrer por ela! A sua compaixão foi até ao fim. E aprendamos.

Hora da missa. Olhaste-me com compaixão e chamaste-me, Senhor, pelo meu nome. E o meu nome, como o dos Doze, está escrito no teu livro! Pertenço-Te, como o povo do sopé da montanha, e aqui, junto do Pastor que és Tu, já nem sinto a fadiga… Recebo de graça, como sempre. E de graça, quero dar também. Envia-me! Pelo caminho, proclamarei que está perto o reino dos Céus… Tão perto.

4 Comments

  1. Que bela reflexão, Teresa, muito obrigada. Muito obrigada pela interpelação que nos faz, pelo amor e fé com que escreve sobre a Palavra de Deus, que nos ajudam a crescer na fé. Que Deus a abençoe e à sua linda família.

  2. Muito bom, Teresa. Obrigado.

  3. Teresa obrigada pela reflexão! Mais uma vez, foi maravilhosa!

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