Em Caná da Galileia...


Amar os inimigos

Oração familiar, sábado à noite. O António lê o Evangelho do dia em voz alta, Mt 5, 43-48. Um dos versículos diz assim:

Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus…

“Mãe, como é que podemos realmente amar os nossos inimigos?” Quer saber a Clarinha.

“Clarinha, a mamã já explicou que amar não é gostar. Podes não gostar mesmo nada de uma pessoa e ainda assim amá-la”, explica o David.

“E amar também não é dar beijinhos de namorados, pois não, mãe?” Pergunta a Sara, com a sabedoria própria nestas temáticas de quem frequenta o primeiro ciclo.

“Eu sei tudo isso”, continua a Clarinha, “mas não sei como se ama um inimigo na prática. Explica-me.”

“Vou contar-vos um dos meus episódios preferidos da vida de Santa Chiara Badano. Sabem quem é? Já vos falei muito dela, porque me toca o facto de que ela teria hoje a minha idade se não tivesse morrido aos dezoito anos. Somos da mesma geração, lemos inclusive os mesmos livros. É giro!”

“OK, conta lá o tal episódio!”

“Pois bem, a Chiara nunca teve muita facilidade na escola. Estudava, dava o seu melhor, mas as coisas nunca foram fáceis para ela. Vou ler-vos o que diz aqui no livro Um Olhar Luminoso, Beata Chiara Badano, escrito por Mariagrazia Magrini, sobre o fim da adolescência de Chiara:

Preparou-se para a sua última prova oral de Geografia, estudando ao sábado e ao domingo. Repetiu a lição em voz alta para o pai e pediu-lhe que lhe fizesse perguntas. No dia seguinte, ao entrar em casa, rebenta a chorar e grita: “Reprovei!” O seu rosto, sempre luminoso, estava triste e apavorado; sofria muito e mostrava-se agitada.

Convidada pela mãe a acalmar-se, reagiu de imediato e contou que foi interrogada durante muito tempo, respondendo acertadamente, mas foi reprovada. Os companheiros reagiram em seu favor, mas a professora mandou que se calassem.

“É preciso que se diga que esta professora tinha uma embirração qualquer com Chiara (e com outras meninas), e isto num tempo em que se podia ser injusto na avaliação. Hoje também se pode ser, mas não com tanta facilidade, pois os professores são também avaliados e muito mais controlados. Neste tempo era diferente… Continuem a ouvir:”

A incompatibilidade para com esta professora fê-la sofrer muito. Apesar disso, nunca sairão dos seus lábios juízos ou palavras negativas sobre ela. Um episódio especial mostra-o claramente. Terminadas as aulas, alguns alunos viram a sua professora descer as escadas e, como não simpatizavam com ela, desataram a correr para a saída, para fazer com que ela caísse. Ao perceber isso, Chiara chamou-os e fez com que parassem, afastando-os da sua intenção vingativa. Tendo percebido o que acontecera, a professora dirigiu-lhe um olhar benévolo e agradecido. Depois, a rapariguinha contará o facto à família, precisando que queria “descobrir todos os dias as pessoas como novas, esquecendo todo o passado.”

“A Chiara teve de repetir o ano, mudando de turma, algo que foi para ela uma forte humilhação. Tudo aceitou com serenidade, fez novos amigos e nunca, nunca se queixou nem deixou que se queixassem a seu lado da injustiça sofrida. O resultado, como veem, foi um crescimento intenso na santidade.”

“A gente nem se lembra que falar mal dos professores é pecado!”

“Sim, parece haver uma licença natural para se criticarem os professores”, diz o Niall. “Todos o fazem, e vocês também. E aqui vemos o testemunho dos santos, amando os inimigos, perdoando aos que fazem o mal, oferecendo a outra face, e recusando abrir a boca para falar mal seja de quem for, mesmo que seja… um professor injusto, mau, que nos estraga a vida.”

“É com estes gestos que se retiram espinhos à Coroa de Jesus. Aprendamos!”

“Já entendi…” A Clarinha vai buscar os terços, distribui-os pelos irmãos e a nossa oração continua…

9 Comments

  1. Catarina Ramos Tomás

    Ao ler este texto fiquei a pensar no que é ou deverá ser a nossa forma de estar na vida, enquanto Cristãos.
    É uma temática com que me confronto diariamente. Há uns domingos atrás o meu Pároco falava na “correcção fraterna” dizendo que devemos ter a capacidade de nos posicionar perante a conduta dos outros em relação a nós e ao que nos rodeia, sempre fraternalmente, mas não é nada fácil e continuo com muitas dúvidas…
    Ao ler este texto veio-me à memória um episódio que aconteceu entre o meu filho do meio (9 anos) e uma colega.

    Dizer-vos antes, que este meu filho é um defensor da verdade, do correcto, do bem feito, da justiça. Para ele, com 9 anos, não existe cinzento. O mundo é preto ou branco…

    Na aula de inglês a professora perguntou quem tinha feito os trabalhos de casa. A colega que está sentada ao lado dele disse que se tinha esquecido do livro dos trabalhos, em casa. O Filipe olhou para dentro da mochila da colega e viu que o livro estava dentro da mala. E denunciou a colega. Disse em voz alta que a colega estava a mentir e que o livro estava dentro da mala. A professora foi verificar e os trabalhos não estavam feitos…

    Quando me contou, achando que eu ia ficar contente, ficou muito surpreso com a minha reacção e tristeza. E só foi capaz de dizer: “mas eu só disse a verdade, ela é que mentiu.”

    Conversámos sobre o sucedido e para minha surpresa, no dia seguinte o Filipe veio-me dizer que tinha pedido desculpas à colega, não sem antes me repetir que tinha dito a verdade…

    Até onde deverá ir a nossa acção e a nossa omissão?
    É extremamente injusta a embirração da professora, de um chefe ou de um colega de trabalho. Mas devo aceitar sempre amando?

    • No caso concreto do Filipe: Santa Teresinha foi auxiliar da mestra de noviças durante alguns dos anos de convento. Conta ela que o que mais lhe custava era a obrigação de corrigir as noviças, e por isso, quando via alguma irmã professa fazer algo errado, suspirava de alívio e pensava: ufa, não tenho que a corrigir! Isto para dizer que precisamos de ensinar aos nossos filhos quando lhes compete e quando não lhes compete corrigir o outro. Eu diria que, entre colegas, os nossos filhos devem ajudar-se e corrigir-se uns aos outros. Quando estão diante de um adulto responsável por eles, cabe ao adulto decidir o que fazer, e eles não devem interferir, a não ser que o adulto lhes pergunte diretamente o que viram ou não, no caso de querer ter testemunhas para algo. Assim, no caso concreto, o Filipe não deveria ter falado porque ninguém lhe perguntou nada. É o que eu diria aos meus filhos, e também tenho alguns “justiceiros” por aqui 🙂
      Quanto à pergunta final: tudo depende do grau de santidade que pretendemos alcançar… As reações dos santos perante as injustiças são sempre as mesmas e não nos deixam margem para dúvidas. É que, se quem nós pretendemos imitar, é Jesus, não sei como conseguimos justificar outro tipo de atitude…
      Bj e bem-haja pela partilha!

  2. Catarina Silva

    Esta é uma duvida que tenho muitas vezes. Até que ponto é que ao não denunciar uma injustiça ou ao calar uma maldade, não estou a compactuar com o mal… Jesus também denunciou injustiças imensas vezes…Será que o Senhor, não me vai pedir contas, um dia, por aquilo que calei? Sobretudo se, ao calar, prejudicar um meu irmão?
    Acredito profundamente que teremos todos de prestar contas por aquilo que fazemos, e essa certeza tranquiliza-me sobretudo em relação às injustiças que os outros têm para comigo, porque sei que não me compete a mim “fazer justiça” e sei que a melhor justiça que posso fazer é não pagar na mesma moeda. Mas (e esta é uma duvida que me assiste muitas vezes), se o Senhor permite que eu assista a uma injustiça praticada a um meu irmão, não esperará de mim uma voz activa e uma acção concreta, na defesa daquele que está a ser injustiçado? Não será isso que o Senhor espera de nós?
    O caso que a Catarina referiu, é um caso relativamente “simples”, porque não prejudicava ninguém em concreto, ou prejudicava eventualmente a professora, mas um prejuízo relativo. Então e nos casos em que alguém fica fortemente prejudicado?
    Para não falar de casos que também não prejudicam ninguém em concreto, e que são mais uma questão de hipocrisia. Como este que se passou comigo:
    Num almoço de família, alguém da tua família que já vive com o seu namorado, que não vai à missa, fala mal da igreja, critica e goza com quem participa na Eucaristia, diz assim:
    “Ai, eu ou me caso pela Igreja, ou não me caso! É que não tem graça nenhuma um casamento pelo civil! Vou escolher a igreja X porque é linda e vai fazer um casamento bonito…”
    Nestes casos, eu pecadora me confesso, tenho mesmo de morder a língua para não falar…Será isso que o Senhor espera de mim?

    • Pois é, Catarina, não é fácil saber quando falar e quando calar! Mas por princípio – como nos ensina Jesus e como fizeram os santos – calamos quando os prejudicados somos nós. Tal como o exemplo de Chiara. Quanto ao resto, temos de saber o nosso lugar e a altura certa, o tempo para falar, o tempo para calar! Venham daí as diversas opiniões, que nos ajudarão a todos!

  3. Ai, então já fui 🙂 Eu não desejo mal a ninguém, nem compactuo com maldades mesmo para com quem não gosto, sou muito metida nas minhas coisas e nos meus assuntos e não gosto de comentar os dos outros, mas… não consigo amar quem não gosto. Também não tenho inimigos (o que é um inimigo? parece que é uma coisa para a vida), nem (acho), ninguém a desejar-me mal. Mas não amo quem não gosto. Pronto, chibatada. E às vezes queixo-me de quem me desilude ou me chateia ou enerva. Outras vezes essas pessoas são-me indiferentes. Pronto, a minha santidade está longe, isso amar quem não gostamos deve ser algo cristão, não? 🙂

    • ps – não tenho qualquer problema em dizer que não gosto de certas pessoas de todo, não me identifico com as suas atitudes e valores e corto, não tenho paciência para elas e nem me quero rodear das suas más energias, quero é distância. Ai se eu fosse reprovada (por professor, empregador, etc) sem merecer fazia logo queixa, ia tudo à frente! E se por acaso vir pessoas que me tentaram prejudicar a levar com água de uma poça, ou com cocó de pombo na cabeça, ou vá, até tropeçar sem se aleijarem (muito), ou a ficar com chiclet no cabelo, até é capaz de me sair um “bem-feita” entre risos (ok, não é capaz, sai-me mesmo). Eu sei, sou um monstrinho sem salvação, mas quem diz a verdade não merece castigo (ou merece?). Isto de só desejarmos sempre o melhor para as pessoas, mesmo para quem nos faz mal, e perdoarmos tudo a toda a gente tem que se lhe diga. É muito bonito no papel, mas então somos papalvos? Se alguém me fizer mal não vou dizer “obrigada, faz mais um bocadinho?” Se alguém me dá um murro recebe logo outro de frente. Pronto Teresa…já percebi que sou um caso perdido e que esta serenidade deve ser para santos mesmo 🙂

      • Estava a pensar nisso um destes dias e na homilia o nosso padre dizia que 1o devemos ser justos… Jesus quando levou uma bofetada não deu a outra face, apenas pediu para que lhe dissessem onde tinha falado mal… É muito difícil perdoar para ser perdoado, não julgar para não ser julgado… Mas o nosso padrão de comparação é Cristo, não é A ou B. É cada dia temos oportunidade de escolher amar ou odiar. É amar a sério dói, mas enche-nos o coração de uma alegria sem medida!

      • Pois, isto é mesmo o cerne do que é ser-se cristão, querida Sara. Não é pêra doce de roer, não! Jesus foi acusado injustamente, condenado à morte por um crime que não cometeu, e nunca abriu a boca para se defender, como salientou Pilatos. Podemos dar a volta ao texto as vezes que quisermos. O texto que hoje comentamos não tem muita volta a dar-lhe, e voltaremos sempre ao mesmo: é preciso perdoar infinitas vezes, dar a outra face, amar o inimigo, sim. Tudo o que for menos do que isto – para mim e para ti – não é cristão, e ponto final. Temos no teu comentário belíssimos pontos para um exame de consciência, preparando talvez uma confissão mais exigente e mais pormenorizada esta quaresma… Bj e bem hajas!

        • Teresa e Olívia, obrigada, a sério, sei que às vezes sou um bocadinho do contra por não ser católica, mas também aprendo muito aqui, especialmente a tornar-me melhor pessoa bebendo os ensinamentos com os quais me identifico. Mas que raio, esta passividade perante a injustiça faz-me muita confusão…e não acredito que seja seguida pela maioria dos cristãos. Então estão a dizer-me que conseguem sempre dar a outra face? Ou que se sentem bem ao serem injustiçadas porque escolhem amar, mesmo que isso vos prejudique, ou aos vossos, que não se indignam? Bem, vocês até acredito (mas não a 100%, não há aí qualquer coisa de monstrinho humano falível só para me sentir melhor? :)) Sinceramente acho que a grande % dos que se dizem cristãos são piores do que eu que admito não o ser (no fundo até sou um amor de pessoa 🙂 Conheço tanta gente que professa ser cristã e faz coisas tão vingativas, regozijando-se com a má sorte dos seus inimigos (e por vezes amigos) à minha frente, até fico parva e penso “fogo, e dizes tu que és católica/o”). Mas não admitem, ou depois confessam-se ou vão à missa, mas no dia a dia continuam a ser assim. Essa perfeição acho que não é da natureza humana. Quando sou menos justa sinto-me mal e tenho de pedir desculpa à pessoa (lutando contra o meu orgulho). Mas quando sou injustiçada…não me consigo calar. Nem acho que deva, ou devamos. É pêra difícil é, entender esse raciocínio…mas com este ensinamento e os vossos comentários vou tentar ser menos precipitada a reagir e tentar perceber melhor os outros antes de os julgar. Agora não me digam é que um cocó de pombo às vezes não parece caído do céu, literal e figurativamente 🙂 Beijinho e boa noite e obrigada pela discussão!!

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