Em Caná da Galileia...


Desenterrando o Aleluia

Oração familiar. Desde que aprendeu a ler, isto é, desde janeiro, a Sara está encarregue de ler a pequena frase do Aleluia antes do Evangelho diário. Fá-lo com muita solenidade e alguma fluência, e certamente já conhece palavras que meninos com o dobro da sua idade ainda têm dificuldade em ler, como “exultai”, “fidelidade”, “benignidade”, “primogénito”, “júbilo”.

Hoje, como sempre, a Sara lê o Aleluia:

Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria!

“Mãe”, diz ela quando termina a leitura, “ontem o Aleluia foi igual! E antes de ontem também!”

“É verdade, Sara, tens razão: o Aleluia é igual a semana inteira. Alguém sabe porquê?”

Os meninos pensam um bocadinho, até que o Francisco explica, recordando uma afirmação que eu fizera no Domingo de Páscoa:

“É que o Dia de Páscoa é tão importante, que se prolonga por oito dias, entre o Domingo de Páscoa e o Domingo da Divina Misericórdia, como se fosse apenas um só dia.”

“Precisamente! Este é o dia que o Senhor fez, e «este dia» vai de domingo a domingo. «Este dia» ainda não acabou!”

“A Páscoa é assim tão importante?” Pergunta a Lúcia.

“A Páscoa é o centro da vida de um cristão. S. Paulo diz:

Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé. (1Cor 15, 14)

“É por isso que cantamos tantos aleluias agora! Cantar aleluia é importante, mãe?”

“É muito importante, sim. Porque estamos cheios de alegria. Jesus ressuscitou, e isso dá-nos a certeza de que tudo irá terminar bem. Nada do que fizermos poderá matar Deus. Nada do que fizermos poderá destruir a sua obra. Não temos tanto poder quanto imaginamos. Ele é vencedor!”

Os meninos vão para a cama, e enquanto alimento o meu bebé, que se aninha nos meus braços, todo entregue ao prazer de mamar, fico a pensar no que acabo de lhes dizer. Estarei eu realmente exultante de alegria, como convém a um cristão? Estarei eu tão centrada em Deus, que nada do que vai acontecendo à minha volta me pode realmente roubar a alegria da ressurreição? Serei eu capaz de me aninhar no colo de Deus, com a confiança absoluta com que o Daniel se aninha no meu?

O Niall liga a televisão para vermos o que se passa pelo mundo enquanto o Daniel bebe o seu leitinho, e as imagens dos atentados mais recentes inundam o ecrã de sangue e terror. Pensar que a morte e o ódio abalaram o mundo ao mesmo tempo que a vida e o amor de Jesus ressuscitado enchiam as igrejas…

O Daniel continua a mamar, e ao meu telemóvel chegam mensagens dos pais dos meninos que vão fazer a primeira comunhão. Ao longo de todo o ano, quase nunca apareceram na missa, nas reuniões, nas atividades propostas, na Via-Sacra ou nas celebrações da Semana Santa; mas agora, parece claro que ninguém vai faltar à reunião com a florista e com o fotógrafo do grande dia. A hipocrisia do nosso cristianismo enoja-me. Que contraste com as igrejas perseguidas!

Espreito uma última vez hoje o site das Famílias de Caná. Não há comentários novos, e a curva das estatísticas mantém-se sem oscilações de maior. Também não parece que haja novas famílias para fazer o seu compromisso, ou novas Aldeias a nascer, e algumas das famílias que puseram a mão no arado olham agora para trás. Para onde foi a alegria exultante, minha e dos outros, que se vive no final dos nossos encontros, retiros e testemunhos? Se eu baixasse os braços e deixasse de trabalhar pelo Reino, alguém daria conta? Não dialogues com a Tentação, diz a doutrina…

Deito o Daniel às escuras, para que não acorde. E vêm-me à memória alguns versículos das histórias da ressurreição, que temos escutado no Evangelho ao longo de toda a semana de Páscoa:

No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro… (Jo 20, 1)

Fica connosco, Senhor, porque o dia está a terminar e vem caindo a noite… (Lc 24, 29)

A ressurreição acontece quando ainda é escuro, ou quando é escuro. Não adianta procurar o Senhor à luz do dia, porque Ele esconde-Se na noite e irrompe no meio da escuridão. É aqui e agora, no desalento do nosso mundo, das nossas hipocrisias, do nosso cansaço, que Ele ressuscita.

Suspiro. Às vezes parece-me mais fácil viver a quaresma, com a sua penitência bem estruturada, o seu convite à oração, à esmola e ao jejum, as suas práticas organizadas, do que a Páscoa, com o seu convite a uma alegria aparentemente absurda. Bem dizia Dorothy Day: “Não é fácil estarmos sempre alegres, manter em mente o dever de rejubilar!”

E recordo-me de um dos gestos mais proféticos que fizemos nesta Páscoa: desenterrar o Aleluia escondido no jardim. Depois de uma quaresma de chuva e tempestades, o Aleluia estava intacto, luminoso e colorido. Mas foi preciso ir buscá-lo à escuridão da terra, sujar os dedos e desembrulhar o pacote onde estava guardado.

“Exultai”, “júbilo”, “alegremo-nos e cantemos”… Como são alegres, as palavras que a Sara consegue ler!

Aleluia. Aleluia. Aleluia. Encho o peito de ar e volto a repetir, aleluia. Devagarinho, o meu coração enche-se das alegrias simples que povoam os meus dias: a minha família, os meus amigos, as Famílias de Caná que nos acompanham, o sol a brilhar, os cães fiéis, os gatinhos, a relva num jardim cheio de bolas e brinquedos…

Pouco a pouco, a alegria de Deus apodera-se de cada fibra do meu ser. Uma alegria intencional, rezada, desejada. Uma alegria que não depende de nenhuma circunstância da minha vida ou da vida do mundo. Uma alegria para lá de qualquer tristeza, de qualquer desalento ou de qualquer dor.

É preciso cantar. É preciso acreditar. É preciso alegrarmo-nos, ainda que neste mundo seja de noite…

5 Comments

  1. Marisa Milhano

    Obrigado querida Teresa

  2. Cara Teresa
    Tenho acompanhado esta página com muita alegria. Convidei muitos amigos para seguirem esta página (curiosamente nenhum padre amigo aceitou, o que me entristeceu, nem mesmo o que tem a seu cargo a Pastoral da Família). Tento espalhar estas mensagens que são como um adubo que visa fortalecer a Família como a Instituição Priveligiada por Deus, que tantos ataques têm sofrido nestes últimos tempos. Já uma vez entrei em contacto por mail com a Teresa para saber como poderiamos fundar em S. Miguel uma aldeia de Caná. Ainda não chegou a hora. Mas chegará! Por isso resolvi escrever dando conta, que no meio do mar, uma sementinha está a germinar e brevemente dará fruto-sempre com o vosso exemplo que nos serve de alento. Bem hajam!

  3. Pilar Pereira

    Manter a alegria no meio dos problemas (no meu caso, profissionais) é o maior desafio. Deixar o desalento “reinar” é a escolha mais fácil, sem dúvida. Obrigada por mais umas palavras “certeiras”.

  4. Licínia Maria

    A hipocrisia, em várias situações e contextos, cansa-nos. Entendo-te Teresa! Mas não podemos deixar que as nossas reflexões nos façam desistir e foste tu que me ensinaste!
    E embora os comentários tenham sido poucos, estou certa de que isso apenas se deve à nossa distração. Adorei o vosso serão bíblico, as vossas lições sobre valores a seguir, a tua e a vossa criatividade, a persistência e a alegria, a “Via Stellae” e “A árvore de Jessé” e a verdadeira Páscoa.
    As vossas sementes darão sempre fruto!!!!!
    Um beijo amigo

  5. Cara Teresa,

    Leio-a há muito tempo e nunca comento. Não comento, porque não sou católica, e temos visões absolutamente opostas sobre muitíssimos assuntos; não vejo este espaço como um espaço de confronto, e respeito-o. Leio-a, porque gosto de ir acompanhando quem pensa de forma diferente de mim, porque acho que uma sociedade democrática exige que sejamos abertos aos outros e tentemos compreender a perspectiva deles sobre os problemas, mesmo que seja para discordarmos.

    Hoje, queria dizer-lhe isto: a Teresa importa-se. Tem uma vida empenhada, militante, coerente com o que acredita. Isso dá sempre frutos. Não duvide.

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