Em Caná da Galileia...


Domingo V da Quaresma, ano A

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

SOMOS MORTAIS

“Vou abrir os vossos túmulos e deles vos farei ressuscitar, ó meu povo”, diz o Senhor em Ezequiel, numa das passagens mais poderosas da Antiga Aliança. E numa das passagens mais poderosas do Evangelho, Jesus ressuscita Lázaro. “Eu não te disse que, se acreditasses, verias a glória de Deus?”

Morte, medo, pânico. Os nossos dias, as nossas mensagens de whatsapp, as notícias atualizadas ao minuto, estão cheios disto, agora que vivemos em plena epidemia covid-19. Pela primeira vez há muito tempo, nós que habitamos o primeiro mundo no século XXI damo-nos conta de que somos mortais. Sabíamos que, no passado, era comum os pais perderem um ou vários filhos. Mas talvez não doesse tanto então, pensamos (e dizemos, que eu já ouvi). Sabíamos que, lá longe, há fome, peste e guerra, e as pessoas morrem todos os dias. Mas já estão acostumadas, pensamos, e nós já nos acostumámos a essas mortes também. O que não sabíamos era que nós éramos mortais. Um vírus microscópico e, de repente, nós que algumas semanas atrás achávamos que até podíamos decidir sobre a nossa própria vida ou morte, nós que comíamos sem vergonha do fruto da árvore do bem e do mal (cf. Gn 3, 6), descobrimos que nada somos. Resta-nos suplicar misericórdia e acreditar que Alguém nos escuta: “Do profundo abismo chamo por Vós, Senhor!”

O povo estava exilado na Babilónia, sem Templo e sem culto. Mas Ezequiel tem uma mensagem de esperança da parte de Deus. As palavras são fortes e gráficas: “Vou abrir os vossos túmulos e deles vos farei ressuscitar, ó meu povo!” O povo regressou, de facto, a casa, reconstruiu Jerusalém, reconstruiu famílias e rotinas. Aquilo que parecia uma prisão eterna, um túmulo selado, foi afinal uma breve passagem. A aparente morte das tradições, orações públicas e rotinas de Israel em terra estrangeira, foi afinal um curto sono. “Reconhecereis que Eu, o Senhor, o disse e o executarei.” A promessa cumpriu-se.

Cumprir-se-á também connosco, aqui e agora? Irá o Senhor abrir os túmulos onde temos vivido todo este tempo, correndo de um lado para o outro com demasiado trabalho, demasiado lazer, demasiada pressa? Irá o Senhor reconduzir-nos às nossas casas, ensinar-nos a transformar rotinas em rituais e fazer-nos redescobrir a alegria de sermos família? Irá o Senhor devolver-nos o templo e o culto, ressuscitando-nos com o Cristo Pascal? A promessa cumprir-se-á.

Em Betânia vivem três amigos de Jesus. Lázaro está doente e, desesperando de toda a ajuda humana, as suas irmãs recorrem a Jesus. Mas Jesus está longe…

Contudo, mesmo longe, o Senhor faz-Se perto, porque na sua omnipresença, a ninguém abandona. E assegura a Marta, a Maria e a cada um de nós: “Essa doença não é mortal, mas é para a glória de Deus.” Como, não é mortal, se Lázaro vai morrer antes de Jesus chegar? A epidemia que assola o mundo parece-nos ser, como a doença de Lázaro, uma epidemia mortal, matando novos e velhos, fechando escolas, levando à falência os mais vulneráveis, encerrando igrejas e fazendo os cristãos passar fome de Pão Eucarístico. Jesus está longe, separado de nós pelo ecrã de um computador, Presença virtual que não podemos tocar. Mas como a doença de Lázaro, também esta doença será, misteriosamente, para glória de Deus.

“Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”, exclamam as duas irmãs. Senhor, se não Te tivéssemos expulsado, há muito, da nossa sociedade, do nosso lazer, do nosso trabalho, das nossas escolas, das nossas leis, das nossas famílias, os nossos irmãos e filhos não estariam agora espiritualmente mortos… Terás Tu poder para abrir os nossos túmulos, quando já cheira mal? Não teremos, desta vez, de todas as vezes, ido longe demais? Nós que fazemos qualquer sacrifício para acabar com a epidemia, estaremos dispostos a fazer qualquer sacrifício para Te trazer de volta à nossa vida?

“E Jesus chorou.” Se nos dói, dói a Jesus também, Ele que é alegria plena e eterna. Mistério insondável! Jesus chorou.

“Tiraram então a pedra”. Só isto. Ele faria o resto! Que pedra impede a saída dos nossos túmulos? Que pedra esconde a nossa podridão interior, que “já cheira mal”? Aproveitemos este tempo favorável para a remover, sem medo de expor diante de Jesus o nosso pecado, bem mais mortífero para a alma que qualquer vírus para o corpo.

“Lázaro, sai para fora!” O grito de Jesus é poderoso, fazendo estremecer o interior das nossas cavernas. Lázaro sai, enfaixado, e Jesus ordena: “Desligai-o e deixai-o ir.” Desliguemo-nos então, dos nossos medos, dos nossos pecados, da vertigem que nos fez chegar aqui. O caminho é para a frente. Não regressemos ao que deixámos!

Hora da missa. Uno-me espiritualmente a todos os sacerdotes do mundo, acompanhando em espírito e verdade o Teu mistério, a Tua vulnerabilidade, Tu que Te fazes Pão, Bem de primeiríssima necessidade, e Te dás, hoje e sempre, sem receio que Te toquem os pecadores, os leprosos, os que “já cheiram mal”. Hora da missa e, mesmo sem a Tua proximidade física, eu sei que és meu amigo…

3 Comments

  1. Meu Deus…que profunda reflexão e tão verdadeira. Um autêntico ‘murro no estômago’, perdoe-me a expressão, porque nos confronta verdadeiramente com o nosso íntimo… “Que pedra esconde a nossa podridão interior, que ‘já cheira mal’?”
    Ainda ontem partilhava uma imagem que achei divinamente real, com esta mensagem: ‘Muitos perguntam nestes tempos onde está Deus?…Exatamente onde O puseram, fora das suas vidas!”
    Também eu peço ao Senhor que me desligue dos meus medos, dos meus pecados,e para não regressar ao que deixámos para trás.
    Obrigado Teresa por tão grande clarividência…que maravilha poder partilhar da forma como interpreta a realidade com o olhar de Deus.
    Bem-haja!

  2. Maria João Fernandes

    Obrigada, Teresa.

    Maria João

  3. Paula Almeida

    Maravilhoso, Teresa… Tão profundo e duro de se ouvir… mas verdadeiro e serve-me em alguns aspectos.
    Obrigada
    Paula Almeida

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