Em Caná da Galileia...


Domingo XXIII do Tempo Comum, ano C

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

COERÊNCIA DE DISCÍPULO

Hoje, as leituras falam-nos de sabedoria, contemplada e vivida.

“Qual o homem que pode conhecer os desígnios de Deus?” Pergunta o autor do Livro da Sabedoria. Quantas vezes fazemos a mesma pergunta, perante o rumo inesperado que a vida vai tomando? Quem reza o Terço diariamente habitua-se a contemplar a vida a partir do seu mistério. Reza-se mistério a mistério, vive-se mistério a mistério. Passando as contas por entre os dedos, vamo-nos apercebendo de como os nossos nascimentos e as nossas mortes, as nossas esperanças e as nossas dores deixam de ser banais e rasteiros para se tornarem mistérios gozosos, luminosos, dolorosos e gloriosos. Porque “os pensamentos dos mortais são mesquinhos e inseguras as nossas reflexões”, mas quando embebidos do Espírito, tornam-se divinos: “Quem poderá conhecer, Senhor, os vossos desígnios, se Vós não lhe dais a sabedoria e não lhe enviais o vosso Espírito Santo?”

Paulo foi um homem plenamente cheio de sabedoria divina. As Escrituras guardam dele uma carta curta, mas deliciosamente sábia. A história é fácil de contar: Filémon, amigo de Paulo, tinha um escravo, Onésimo, como era comum naquele tempo no Império Romano. Um dia, Onésimo fugiu e refugiou-se junto de Paulo, que estava prisioneiro, e Paulo fez dele um cristão. Depois, com a sabedoria do Espírito, decidiu reenviá-lo ao seu patrão. Não estava certo que Onésimo fugisse assim, tal como não estava certo que Filémon, um cristão, possuísse escravos. Podia Paulo dar ordens contra a legislação em vigor? Na sua carta, Paulo manifesta a única forma válida e realmente eficaz de revolucionar o mundo: o amor. Porque se a força, as armas e a argumentação dos inteligentes deste mundo podem alcançar resultados legislativos, só o amor pode converter os corações: “Sem o teu consentimento, nada quis fazer, para que a tua boa ação não parecesse forçada, mas feita de livre vontade.”

Como Paulo, também os cristãos se angustiam perante a crueldade e a injustiça do mundo de hoje e de sempre, que legisla e atua contra os mandamentos de Deus. Sofremos ao ver a nossa impotência diante das potências deste mundo, e perguntamo-nos muitas vezes: o que posso eu, tão pequenino, fazer? Paulo mostra-nos como podemos mudar o mundo coração a coração, anunciando com clareza a verdade aos que nos são próximos, sem omitir aos irmãos em Cristo as exigências da nossa fé: “Mando-o de volta para ti, (…) não já como escravo, mas muito melhor do que escravo: como irmão muito querido. (…) É isto que ele é para ti, não só pela natureza, mas também aos olhos do Senhor.”

Se os cristãos de todos os tempos tivessem levado a sério as exigências da sua fé, a escravatura não teria durado tantos séculos, nem chegaríamos aos dias de hoje a debatermo-nos com temas que há muito deviam ter sido arrumados, como o aborto, a pena de morte e a fome no mundo. Usemos da mesma sabedoria para lidar com os temas atuais da ideologia de género e outros que ameaçam atingir a imagem e semelhança de Deus no ser humano.

No fundo, o que Paulo recorda a Filémon é aquilo a que o padre Caffarel chamou “o dever de sentar”, segundo o Evangelho: “Quem de vós, desejando construir uma torre, não se senta primeiro a calcular a despesa…?” Dizer levianamente que somos cristãos sem antes estudar a fundo as exigências da fé e sem nos dispormos a praticá-las é uma mentira. A mesma mentira que permite aos noivos celebrar o sacramento do matrimónio sem estarem profundamente determinados a ser fiéis até ao fim ou a abrir-se à vida; e aos pais apresentar os filhos ao batismo sem qualquer intenção de os educar na fé; e aos crismandos dizer “presente” em voz alta diante do seu bispo, enquanto suspiram de alívio por participarem da última missa das suas vidas.

Ser cristão não é para cobardes. Aliás, ao ver-Se seguido por “uma grande multidão”, logo Jesus tratou de esclarecer: “Se alguém vem ter comigo, e não me preferir ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo.” Era realmente pouco provável que uma multidão tão grande estivesse disposta a aceitar as exigências do amor, tal como é pouco provável que o estejam os grupos numerosos de catequisandos nas nossas comunidades. Como Jesus e Paulo, precisamos de evangelizar com honestidade e clareza, sem omitir as exigências do discipulado.

Hora da missa. Para estarmos aqui, renunciámos aos nossos pequenos confortos e lutámos contra pensamentos tão mesquinhos como “o meu direito ao descanso”; mas noutras partes do mundo, para celebrar a Eucaristia, há quem arrisque a própria vida e precise de enfrentar a própria família. Seremos merecedores do nome de cristãos, nós que tememos o confronto com a verdade e raramente nos “sentamos” a estudar a nossa fé? A mesa está posta. Que mistério insondável este, que torna divinos todos os nossos mistérios! “Saciai-nos desde a manhã com a vossa bondade”, rezamos. Só o Pão e a Palavra nos permitirão chegar “à sabedoria do coração”…

 

 

4 Comments

  1. Pilar Pereira

    Obrigada por mais esta reflexão, Teresa. Dá pano para mangas… e para o resto da peça também! Há que sentar e pensar, mesmo!

  2. Que bela reflexão! Disse o Papa Francisco ontem em Moçambique “gostemos ou não, somos chamados a encarar a realidade como ela é. Os tempos mudam e devemos reconhecer que muitas vezes não sabemos como inserir-nos nos novos tempos, nos novos cenários; podemos sonhar com as «cebolas do Egito» (Nm 11, 5), esquecendo que a Terra Prometida está à frente, não atrás, e neste lamento pelos tempos passados, vamo-nos petrificando, vamo-nos «mumificando». E não é bom! Um bispo, um sacerdote, uma irmã, um catequista mumificados não está bem! Em vez de professar uma Boa Nova, o que anunciamos é algo cinzento que não atrai nem inflama o coração de ninguém. Esta é a tentação.”
    Não é para covardes ser cristão… é verdade! Eu às vezes sinto-me cobarde perante tanta maldade, tanta perversão…que perco a vontade de viver inserida no mundo!
    É essa revolução do amor…a “capacidade de compaixão” que fala o Papa. Tão difícil para mim…
    “Não permitais que vos roubem a alegria” dizia também aos jovens moçambicanos!
    Peço ao Senhor essa graça! 🙂 Santo Domingo para todos!!

  3. Catarina Silva

    Beeeem, isto hoje dá “pano para mangas”, como bem diz a Pilar!
    De facto como somos cobardes! A minha maior descoberta tem sido a exigência directamente proporcional à beleza da fé cristã…Será que seremos mesmo merecedores do nome de cristãos, nós que para além de tememos o confronto com a verdade e raramente nos sentarmos a estudar a nossa fé, agimos maioritariamente com uma tremenda falta de amor?
    Duvidas, duvidas….
    Obrigada Teresa, por esta dura (mas necessária) reflexão!

  4. Sempre pristina a sabedoria desta reflexão semanal. Obrigado Teresa, por colocares sempre “os pontos nos ii’s”!

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