Em Caná da Galileia...


O resto de Israel (sobre os abusos sexuais na Igreja, 2ª parte)

(Ler a 1ª parte deste artigo aqui)

Jesus e a Igreja, carne da mesma carne, unidos num matrimónio indissolúvel, agonizam sobre a Cruz nos nossos dias.

Quem são os agressores de hoje? Os mesmos que agrediram Jesus: os seus amigos íntimos. Jesus foi traído por Judas, um dos doze, que comia à sua mesa e que comungou o seu Corpo naquela memorável e trágica primeira missa. 1700 anos antes, também José, filho de Jacó, fora traído pelos seus irmãos e vendido como escravo (Gn 37). O profeta Zacarias profetizou: “E se lhe disserem: que são essas feridas em teu peito e em tuas mãos? Ele responderá: São as que recebi na casa de meus amigos.” A traição vem sempre de dentro. Não nos fixemos nos números, se são exagerados ou manipulados, se os padres em questão estão vivos ou mortos. É perder tempo. Um só caso de pedofilia na Igreja devia bastar para nos fazer vestir de cinza e saco e ordenar um jejum, como o povo de Nínive ao escutar Jonas.

Arrepia-me ver cristãos a fazer comparações entre os números de pedofilia na Igreja e os do mundo, exponencialmente muito superiores. Jesus nunca nos disse para nos compararmos ao mundo, antes nos ordenou: “Sede perfeitos, como o vosso Pai do Céu é perfeito.” (Mt 5, 48) E São Paulo falou duramente contra a tentação fácil de nos compararmos com os de fora: “Eu vos escrevi na minha carta para que não tivésseis relações com impudicos. Não me referia, de modo geral, aos impudicos deste mundo ou aos avarentos ou aos ladrões ou aos idólatras, pois então teríeis de sair deste mundo. Não, escrevi-vos que não vos associeis com alguém que traga o nome de irmão e, não obstante, seja impudico ou avarento ou idólatra ou injurioso ou beberrão ou ladrão. Com tal homem não deveis nem tomar refeição. Acaso compete a mim julgar os que estão fora? Não são os de dentro que vós tendes de julgar? Os de fora, Deus julgá-los-á. Afastai o mau do meio de vós.” (1Cor 5, 9-12)

Mas os agressores são também todos os crentes, sacerdotes e leigos, que não abusam de crianças, mas que comungam sem discernir o Corpo, sem se examinarem, em pecado mortal, com enorme tibieza. Todos a quem a sã doutrina faz comichão dos ouvidos, como Paulo dizia a Timóteo, e que torcem as Escrituras para a sua própria perdição, como Pedro afirma ao concluir a sua segunda carta. Todos os que disseminam erros e heresias, que ao mal, chamam bem, e ao bem, chamam mal, como alerta Isaías, e ensinam o que não têm o direito de ensinar, como Paulo diz a Tito. Todos os que aproveitam a ocasião para atirar pedras aos sacerdotes e ao celibato (como se a esmagadora maioria dos pedófilos não fossem pais, tios, avós, ou como se o casamento fosse um remédio para tarados). Todos os que, usando embora a Igreja para obter os sacramentos e os necessários “carimbos” eclesiais, não têm pudor em falar do que não sabem e tomar a parte pelo todo. A Igreja não precisava do escândalo da pedofilia para ficar em chamas. Bastava tudo o resto.

Quem são as vítimas? Se os agressores vêm de dentro da Igreja, as vítimas também: elas são, em primeiro lugar, as crianças cristãs de ontem e de hoje, abusadas, feridas, destruídas, os pequeninos escandalizados que Jesus refere no Evangelho. Em cada criança, hoje talvez adulto, e em cada família dilacerada por este crime hediondo, está Cristo crucificado, coroado de espinhos, desnudado, violentado. E Maria, de pé junto à cruz, é imagem de todas as mães que, lutadoras, não desistem de sarar as feridas sangrentas destes filhos abusados.

Mas as vítimas são também todos os fiéis que, pelo ensino herético de quem os guia, são afastados da sã doutrina, pervertendo-se assim famílias inteiras, diz Paulo diz a Tito.

Por fim, as vítimas são também os sacerdotes, a grande maioria dos sacerdotes de hoje, que não são criminosos nem corruptos, mas que agora não conseguem passar na rua sem que os agridam com os piores insultos. E aqui está a estranha beleza desta situação: misteriosamente, misticamente, estes sacerdotes – que são a esmagadora maioria – estão hoje mais unidos do que nunca a Jesus, crucificados com Ele por crimes que não cometeram. É por isso que, mais do nunca, este seu sofrimento é necessário, em expiação pelos seus irmãos de sacerdócio. “Por vossa causa, o Senhor enfureceu-se até mesmo contra mim, e disse. Também tu não entrarás lá!” (Deut 1, 37) Explicou Moisés ao povo, antes de morrer às portas da Terra Prometida aonde o conduzira com tanta fidelidade durante 40 anos. Sobre a Cruz, nesta Quaresma como na primeira e trágica Sexta-feira Santa, está o único que nunca pecou, o Cordeiro inocente, expiando por todos nós.

Se os sacerdotes tomarem consciência desta identificação entre a Esposa-Igreja e o divino Esposo, poderão vislumbrar a beleza agreste da sua dor, esta beleza que “não é esplendor que pudesse atrair o nosso olhar” (Is 53, 2), mas que é a fonte da redenção. Neles, como em Jesus, cumpre-se a profecia de Isaías: “Nós o tínhamos como vítima do castigo, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi trespassado por causa das nossas transgressões, esmagado em virtude das nossas iniquidades. O castigo que havia de trazer-nos a paz, caiu sobre ele, sim, por suas feridas fomos curados. Dentre os seus contemporâneos, quem se preocupou com o facto de ter ele sido cortado da terra dos vivos, de ter sido ferido pela transgressão do seu povo? Ele entregou a sua alma à morte e foi contado entre os transgressores, mas na verdade levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores fez intercessão.” (Is 53)

A pandemia foi um primeiro filtro para reduzir o número de crentes a números mais próximos da realidade efetiva. A crise que agora vivemos é o segundo. Alegremo-nos, pois esta redução numérica aponta para a boa notícia de que nos estamos a aproximar do fim: “Quando começarem a acontecer estas coisas, erguei-vos e levantai a cabeça, pois está próxima a vossa libertação.” (Lc 21, 28) As Escrituras falam continuamente de um “resto de Israel”, quando se referem aos tempos messiânicos: “Um resto, o resto de Jacó, voltará ao Deus forte. Com efeito, ó Israel, ainda que o teu povo seja como a areia do mar, só um resto dele voltará.” (Isaías 10, 21-22) As cartas apostólicas são ainda mais claras. Afirma o Catecismo nos nºs 673-677, baseado nas Escrituras: “Antes da vinda de Cristo, a Igreja deverá passar por uma prova final, que abalará a fé de numerosos crentes (…) A Igreja não entrará na glória do Reino senão através dessa última Páscoa, em que seguirá o Senhor na sua morte e ressurreição. O Reino não se consumará, pois, por um triunfo histórico da Igreja.”  Se este tempo de prova está no início, se já vai a meio, ou se já se aproxima do fim, não nos é revelado. Na verdade, diz Pedro, “para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um dia.”

E são também de Pedro estas palavras inspiradas para a crise da Igreja de hoje, que o incêndio de Notre Dame ilustrou: “Amados, não vos alarmeis com o incêndio que lavra entre vós, para a vossa provação, como se algo de estranho vos estivesse acontecendo; antes, na medida em que participais dos sofrimentos de Cristo, alegrai-vos, para que também na revelação da sua glória possais ter uma alegria transbordante. Bem-aventurados sois! Mas ninguém dentre vós queira sofrer como assassino ou ladrão, ou malfeitor ou como delator, mas se sofre como cristão, não se envergonhe, antes glorifique a Deus por esse nome. Com efeito, é tempo de começar o julgamento pela casa de Deus. Ora, se ele começa por nós, qual será o fim dos que se recusam a obedecer ao evangelho de Deus? Se o justo com dificuldade consegue salvar-se, em que situação ficará o ímpio e o pecador?” (1Pedro 4, 12-18)

Quaresma 2023. A Igreja está a arder. É pela Igreja, como nos assegura Pedro, que o julgamento tem de começar.

Ao abrir a Quaresma em Quarta-feira de Cinzas, o profeta Joel gritou para quem o quis escutar: “Ordenai um jejum, proclamai uma reunião sagrada! Entre o pórtico e o altar chorem os sacerdotes, ministros do Senhor, e digam: Senhor, tem piedade do teu povo! Não entregues ao opróbrio a tua herança, para que as nações zombem deles! Porque dirão entre os povos: Onde está o seu Deus?” São palavras muito antigas, que ainda hoje os Judeus leem durante a Festa das Expiações, quando durante oito dias inteiros, como nação, pedem perdão a Deus pelos pecados de todos. Não terá chegado a hora de fazermos o mesmo, como Igreja de Portugal?

7 Comments

  1. Tânia Côrte-Real

    Estes tempos tem-nos inquietado bastante aqui por casa, mas é mesmo o que pensamos, basta um caso para ser terrível. Ainda estamos a digerir os dois textos, mas vão certamente ajudar-nos na nossa caminhada da quaresma.

  2. Teremos de saber continuar este caminho por entre os escolhos, agora a descoberto, pela maré vazante. Será quaresma por muitos meses… Creio que o Espírito Santo inspira e ilumina a Sua Igreja e certamente que do Sínodo advirão decisões sábias e ajustadas. Algumas novas certamente. É tempo de a temporalidade ser reconhecida enquanto temporalidade, para que possamos sentir a Brisa no fim da tarde e reconhecer o Senhor… De quando em vez a Igreja arde, de quando em vez reconhecemos que estamos nus, mas tenho a profunda convicção de que o nome de Deus é Misericórdia e confio no discernimento do Santo Padre. O fim dos tempos está anunciado há dois mil anos, mas não sabemos o dia nem a hora… Continuemos a partilhar a alegria de sermos batizados! Um beijinho a todos!

    • Rita, o fim dos tempos não está anunciado: está inaugurado! Ou seja, com a ressurreição de Jesus entrámos no fim dos tempos. Por isso, todas as admonições dos apóstolos nas suas cartas são para nós hoje também, como foram para os seus contemporâneos e para todas as épocas históricas desde então. Vivemos no fim dos tempos. O que nós não sabemos é quando é que o fim dos tempos termina, isto é, quando chega o Dia do Senhor, o Dia do Julgamento. Bjs

  3. Após ler esta reflexão que traduz o seu sentimento e analise como cristã. Fico só com uma dúvida, onde está a misericórdia a compaixão e ainda mais importante o perdão. Como diz o meu amigo Padre Jaime temos de rezar o Pai Nosso ” perdoar a quem nós ofendeu” Sem perdão a vida Cristã seria impossível. Cumprimentos

    • Sem dúvida, senhor Carlos, o perdão e a misericórdia para com os abusadores é um outro tema, esse muito mais difícil de viver pelas vítimas, mas absolutamente essencial para a sua libertação. Não me debrucei a analisar o lado das vítimas em relação aos seus abusadores. Os artigos debruçam-se sobre a nossa forma de compreender, aceitar, encaixar o incêndio que abalou a Igreja. Mas tem toda a razão: também nós precisamos de perdoar aos abusadores, aos que encobriram, aos que, de uma forma ou outra, nos traíram como Igreja. Perdoar como também somos perdoados, diz o Pai-Nosso… Um longo caminho de vida cristã a percorrer! Ab

      • No artigo, refiro o caso do homem que São Paulo excomungou, na comunidade de Corinto, com palavras duras e claras, e que aplico aos que praticam o abuso sexual no seio da Igreja. Se avançarmos para a segunda carta aos Coríntios, vemos como este homem foi restituído à plena comunhão, perdoado, recuperado: 2Cor 2, 5-11. O perdão, portanto, foi total, mas a comunhão plena com a Igreja de Corinto só foi possível depois da justiça divina atuar, através da pena da excomunhão. A misericórdia de Deus em nada se opõe à sua justiça! Ambas são plenas e fruto do amor. Quanto mais exigentes formos, mais possível se torna a conversão do irmão. Deus ama-nos como somos, mas ama-nos demasiado para nos deixar ficar como somos. Um abraço!

  4. Pilar Pereira

    Mais uma vez, grata por estas palavras. E por estas, que escreveste no comentário anterior: “Deus ama-nos como somos, mas ama-nos demasiado para nos deixar ficar como somos.” – Tão simples e tão “au point”!

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