“Não entendo uma coisa.” O Francisco interrompe o silêncio de todos, depois da leitura de mais um episódio das Memórias da Irmã Lúcia. “A partir do momento em que começaram as aparições, a vida da Lúcia não se tornou mais fácil, mas mais difícil!”
De facto, acabávamos de ler a descrição de um rol de problemas com que a Lúcia se começou a debater a partir das aparições. Por fim, lemos este parágrafo:
No seio da minha família havia ainda outro desgosto, de que eu era a culpada, como diziam. A Cova da Iria era uma propriedade pertencente a meus pais. No fundo, tinha um pouco de terreno bastante fértil, no qual se cultivava bastante milho, legumes, hortaliças, etc. Nas encostas, havia algumas oliveiras, azinheiras e carvalhos. Ora, desde que o povo aí começou a ir, não mais aí pudemos cultivar coisa alguma. As gentes tudo pisavam; grande parte ia a cavalo e os animais acabavam de comer e estragar tudo. Minha mãe, lamentando esta perda, dizia-me: ‘Tu agora, quando quiseres comer, vai pedi-lo a essa Senhora!’ Minhas irmãs acrescentavam: ‘Tu agora, só havias de comer o que se cultiva na Cova de Iria!’ Estas coisas custavam-me tanto que eu não me atrevia a pegar num bocado de pão para comer. (2ª Memória, ponto 9)
Uma das tentações de sempre do cristianismo – que até Jesus experimentou – é a de usarmos o poder de Deus para resolver a nossa vida material, a nossa saúde, os nossos problemas. Transformar pedras em pão ou não se magoar ao saltar de um pináculo são desafios bastante atraentes, e quanta gente se deixa iludir por estas tentações! Elas são, aliás, a base da proliferação das seitas. Aí, em assembleias emotivas, a fé em Jesus vem acompanhada da promessa de ser abençoado como Abraão, rico como Salomão, poderoso como David; mas ninguém acrescenta “e crucificado como Jesus”.
O sinal dos cristãos é a cruz. No Carmelo, todas as celas têm na parede uma cruz vazia, sem a imagem de Cristo, simbolizando a cruz que cada um é desafiado a tomar aos ombros. Em Fátima, Nossa Senhora disse aos pastorinhos, depois de lhes perguntar delicadamente se queriam oferecer-se a Deus:
Tereis, pois, muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto. (13 de maio)
E em Lurdes, Nossa Senhora disse à pastorinha Bernardette:
Prometo fazer-te feliz, não neste mundo, mas no outro.
Os cristãos de Alepo, os mártires e os santos de todos os tempos sabem bem o significado da cruz. Um dia, enquanto eu contava algumas histórias de mártires do século XX num retiro para crismandos e seus pais, uma mãe interrompeu-me, dizendo: “Todas essas histórias estão muito longe de nós e dos nossos filhos. Aquilo que cada um de nós, pai e mãe, deseja para os seus filhos é a sua felicidade, não uma vida de dificuldades. Queremos que eles tenham o mais possível de boas experiências.” Claro que sim, mas não à custa da sua santidade. De que vale ter uma vida cheia de boas experiências, se no final não alcançarmos o Céu? E para o alcançarmos, Jesus não abriu mais nenhum caminho que não o da sua cruz.
Quando rezamos, rezamos, rezamos, e Deus não nos dá o bebé que tanto queremos, a saúde que tanto necessitamos, o emprego tão merecido, logo nos culpabilizamos, pensando: “Não terei eu fé suficiente? Não me amará o Senhor tanto a mim como àquela pessoa, que parece tão abençoada? Não saberei rezar?” As montanhas que Jesus, no Evangelho deste domingo, promete sermos capazes de mover com um pouco de fé, não são, com toda a certeza, as montanhas da doença ou dos problemas materiais que nos assolam. Teria sido um bocadinho disparatado, Jesus ter dado a sua vida para que tenhamos mais dois ou três anos com saúde, ou para que os campos que cultivamos sejam rentáveis… As montanhas que Deus quer que façamos mover estão dentro de nós, no nosso coração, e nos corações daqueles que o Senhor nos confiou.
Mas então, e os milagres dos santos, dos primeiros cristãos, dos grupos de oração carismática, de alguns profetas do nosso tempo? Eles acontecem, sim, por pura gratuidade de Deus, e como sinal do seu poder. Mas não são, de forma alguma, o modo usual de Deus agir, especialmente junto dos seus amigos. A esses, Jesus prefere oferecer o maior dos seus dons: a sua cruz.
A vida dos pastorinhos foi marcada pelo sofrimento. Mas ao contrário de tantas vidas sem sofrimento, na sua eles encontraram uma paz e uma alegria interior que nada, nem ninguém, podia abalar. Quando foram ameaçados de morte (como forma de os assustar a confessar a sua “mentira”), os pastorinhos cantarolaram, batendo palmas de alegria:
Mas que bom! Eu gosto tanto de Nossa Senhor e de Nossa Senhora, e assim vamos vê-los em breve! Se nos matarem, vamos para o Céu! (2ª Memória, ponto 12)
Se tivermos fé como um grão de mostarda, as montanhas do medo, da tristeza, do desalento, da cobardia, da angústia esfumar-se-ão; e no horizonte assim desimpedido, o caminho da cruz levar-nos-á diretamente ao Céu de Jesus…
Obrigado!