Testemunhos


A eutanásia e “como morre um cristão”

Testemunho da Sónia Santos, enfermeira de cuidados paliativos

Talvez por força de influência da minha profissão,  quando olho para os meus filhos, assim bebés pequeninos, frágeis, vulneráveis, faço muitas vezes o exercício de imaginá-los velhinhos, com a cara enrugada, as costas curvadas, a mente talvez demente, o corpo velho, cansado e/ou doente. Questiono-me sobre quem cuidará deles nessa altura… Que coragem terão eles para suportar a sua velhice? Que resiliência terão eles para suportar uma doença terminal sua ou das suas esposas ou filhos?

Quando estou diante de um doente paliativo, jovem ou velho, surge-me também muitas vezes espontâneamente este exercício. Imagino aquele dia em que aquela pessoa, ali à minha frente, agora gasta e muitas vezes abandonada dias inteiros, era um lindo bebé, profundamente amado e desejado pelos seus familiares. Imagino aquele cenário normal em que todos lhe queriam pegar, beijar, afagar, cuidar, limpar a baba, trocar uma fralda, dar banho, massajar com creme, pegar ao colo porque não pode andar, suportar os seus choros e os seus gemidos e fazer de tudo para o acalmar, sossegar e adormecer, etc, etc…

É fundamental este exercício de rever constantemente quem somos, desde o princípio. O ser humano não é apenas o seu ponto alto, o adulto fisicamente capaz e cognitivamente eficaz. Esta é apenas uma pequena parte da vida de todo o ser humano. Assim que atingimos a capacidade máxima, logo a seguir a curva começa a decrescer.

O envelhecimento, ou a perda de capacidades por doença é temido, indesejado e a ciência e a medicina lutam com todas as armas contra as rugas e as bengalas! Podia dizer-se que há uma tolerância maior para a esquerda da curva, desde a debilidade do nascimento até ao potencial máximo do adulto. Para o crescimento. Mas por vezes constato o perverso do contrário disto. A verdade é que já desde a simples ideia da concepção tudo está estabelecido para ser perfeito e sem desgastes de maior… Em tempos ouvia um especialista referir-se com algum humor relativamente à excessiva medicalização do humano, dizia ele: “Até para conceber um filho se vai primeiro ao médico e só depois para a cama…”.

De uma maneira geral as pessoas procuram uma vida sossegada, com qualidade, sem doenças nem limitações que as impeçam de se auto-determinar em todos os assuntos. Isto não teria mal nenhum, não fosse ser uma triste e até ridícula obstinação contra o inevitável… No fundo, todos sabemos que o sofrimento está incluído no viver e que a doença pode acontecer, mesmo tendo todos os cuidados preventivos conhecidos. Um cristão procura uma vida não tanto com qualidade, antes com qualidades. Em linguagem cristã, com virtudes.

A Dr.ª Ana Cláudia, uma médica de Cuidados Paliativos no Brasil conta a história de um doente jovem que acompanhou até ao dia da sua morte. Num determinado momento ele estava tão bem (controlado sintomaticamente) que decidiram repetir as análises para verificar o valor da sua hemoglobina que à entrada do internamento era bastante abaixo do normal (muito mesmo). O resultado confirmou que a hemoglobina continuava exactamente  igual. A reação do doente foi de absoluta resignação e aceitação. Perante tal reacção, a Dra Cláudia espantada, tirou a sua bata de médica, sentou-se ao seu lado e perguntou-lhe como é que ele conseguia reagir assim. Ele explicou-lhe que tinha sido o seu pai que o tinha ensinado a ser assim, um dia mostrou-lhe aquilo a que chamou de “o livro da vida” e disse-lhe: “quando tudo estiver a correr mal na tua vida abre a primeira página e lê, lá está escrito “isso vai passar”. Quando tudo estiver a correr bem na tua vida, abre o livro na segunda página, lá está escrito “isso também vai passar”.

Carlos da Áustria é um gigante que também nos ensina. Ele não quis deixar passar em  vão o seu processo de doente em fim de vida, fez questão de chamar o seu filho a todo aquele acontecimento e mostrar-lhe, ensiná-lo, “como morre um cristão”. Há algo de verdadeiramente impressionante, belo e nobre nesta atitude. Há fibra de gente! Carlos confinado ao exílio e agora doente prestes a morrer e sem qualquer assistência médica afirma que oferece todo o seu sofrimento para expiar os pecados do seu povo, não podendo fazer mais nada enquanto imperador, podia ainda doar a sua vida, como Cristo na cruz, expiando os pecados do seu povo, continuando assim a servi-lo até ao fim. No momento da morte perdoou em voz alta a todos os que lhe causaram mal. Confidenciou a Zita, sua esposa: ” Custou-me muito que o menino tenha assistido a isto tudo, mas eu quero que ele veja como morre um imperador e um cristão.”

Há uns dias uma familiar de um doente jovem em fim de vida aborda-me espantando-se com a coragem que é necessária para todos os dias lidar com um trabalho tão triste, como os enfermeiros que trabalham em cuidados paliativos…. Disse-lhe: “o processo de morte, de vivência e preparação para o fim da nossa vida pode ser tão revelador, tão transformador… É um período muito bonito na vida de um ser humano. Repare, há situação mais propícia ao amor, ao afecto, à doação máxima, ao sacrifício pelo outro como se realmente cada minuto fosse uma urgência, do que numa doença? E para o doente… Em que outra situação o ser humano exercita tanto a humildade? Fica exposto na sua intimidade, nudez, sofrimento físico, como nunca antes e isto por si só provoca transformações inimagináveis. Ela respondeu-me com um leve sorriso de espanto consentindo: ” Nunca tinha pensado nisso… Nunca me tinha passado pela cabeça que a morte pudesse ter alguma coisa de bonito.”…

O tema da ordem do dia é a Eutanásia. Todos já lemos e ouvimos tudo sobre a eutanásia, os argumentos contra e a favor, os números, as estatísticas dos países onde já foi aprovada e as conclusões que estas permitem. Sabemos então, por exemplo, que o dito “sofrimento intolerável”, favorável da eutanásia, não acontece maioritariamente por causa do sofrimento físico, os critérios que levam as intenções adiante são em maior percentagem as relacionadas com a perda de autonomia, a perda de qualidade de vida, ou o sentir-se um fardo para os outros.
Isto é um sinal claro de como a nobreza mais elevada do ser humano se está a perder…

Por estes dias o Papa Francisco afirmava “não há humildade sem humilhação”. Que verdade impressionante, acutilante… Para quem se identifica com Jesus, esta verdade não causa nenhum espanto, ou escândalo. Basta mergulhar no tempo da quaresma que está aí quase a (re)começar, basta contemplar os mistérios da paixão de Jesus. Pois…. estar doente, dependente de terceiros, sempre com alguma queixa é muito chato, é uma humilhação muito grande.

“Perante alguém que sofre, alguém profundamente vulnerável e a precisar de ajuda, queremos ter mais para lhe oferecer do que tirar-lhe a vida. A eutanásia não acaba com o sofrimento, acaba com a vida.” Cito a Dr.ª Isabel Galriça Neto, uma das médicas mais importantes na história dos cuidados paliativos em Portugal, numa das suas inúmeras afirmações contra a eutanásia e a favor da vida.

Quem trabalha em (bons) cuidados paliativos anos a fio conta pelos dedos de uma mão o número de doentes que em algum momento falaram de eutanásia, ou pediram para que antecipassem a sua morte. E porquê? Porque o seu sofrimento intolerável foi tratado. E controlada essa parte, a pessoa fica disponível para todo o restante processo de despedida no seu tempo natural.

Muitos doentes terminais se questionarão no íntimo do seu sofrimento “meu Deus, porque me abandonaste?” Isso é absolutamente compreensível. Nesse momento, essa pessoa precisa de sentir amada e acompanhada pela sua família. Nesse momento, essa pessoa precisa também e, antes de qualquer outra intervenção, de Cuidados Paliativos, de uma equipa com os conhecimentos avançados e específicos da área da medicina paliativa.

No nosso país já se mata o ser humano no início da sua gestação e para isso apenas é necessário que a mãe da criança assim o deseje. A eutanásia é apenas mais um passo na escalada de enganos que o ser humano percorre nestes tempos. Ambos são homicídio, ainda que a eutanásia se esconda sobre o pretenso fundamental direito de auto-determinação do adulto livre e esclarecido… Na verdade é também esse suposto direito que permite às mulheres matarem um ser humano que se gerou dentro do seu útero.

Do ponto de vista meramente civil/legal, há essencialmente duas ideias claras que justificam o não à eutanásia. Uma é o que constitucionalmente está assegurado “a vida humana é inviolável”. Todos percebemos a importância desta regra. Outra é o basilar propósito da medicina de garantir cuidados de saúde e suporte na doença. Se se fere a relação de confiança com o propósito mais nobre da medicina, jamais o cidadão poderá voltar a pôr-se nas mãos do seu médico sem sentir uma angústia gigante de que a medicina e a lei numa situação de doença terminal lhe sugiram a morte antecipada como solução médica e legal…

A humanidade está, mais uma vez a bater no fundo. O dia 20 de fevereiro marca oficialmente um ponto de viragem no que toca a alma do  povo português, mas a luta não acabou, ainda agora começou.

O povo voltou para o acampamento e os anciãos de Israel disseram: «Porque é que o Senhor deixou que fôssemos hoje vencidos pelos filisteus? Vamos buscar a Silo a arca da aliança do Senhor: que ela esteja no meio de nós e nos salve das mãos dos nossos inimigos». (1.º Livro de Samuel 4,1-11.)

Recordo aqui um início de dia recente, oração na viagem de carro. “Apesar de Deus estar com os israelitas eles perderam aquela batalha… Mas o que sabemos é que esta não é a batalha final, essa sabemos qual é o resultado… ”

Os cuidados paliativos em Portugal são ainda uma miragem apesar dos esforços de alguns há pelo menos três décadas. No dia 17 de Março irá decorrer a jornada de cuidados paliativos em Fátima, o público alvo somos todos nós agentes pastorais e/ou profissionais de saúde.

Continua a ser uma necessidade sensibilizar e instruir a população sobre os cuidados paliativos.  Neste dia, no final do evento o Bispo de Leiria-Fátima irá consagrar a nossa Senhora a causa dos Cuidados Paliativos em Portugal. A quaresma está aí à porta, que os nossos planos de renúncia familiar, jejuns e oração extra, incluam esta intenção também.

Na noite anterior à sua morte, o imperador Carlos confidenciou à sua esposa: “Toda a minha aspiração é conhecer sempre, o mais claramente possível e em todas as coisas, a vontade de Deus, e segui-la, e da maneira mais perfeita”.

8 Comments

  1. Cristóvão Sousa

    Sónia, do fundo do coração, obrigado! Obrigado por este testemunho!

  2. Obrigada Sónia pela tua partilha.

  3. Oh Sónia…por este andar eu vou ser a primeira a ficar sem trabalho!!! (Deixa-me pôr humor no assunto senão até dá vontade de chorar tamanha miséria da humanidade!)
    Obrigada pelo teu testemunho aqui mas essencialmente pelo trabalho de cada dia. Quando a sociedade que temos ainda só consegue afirmar “quem quer sofrer, sofre. Quem não quer não pode ser sujeito a isso = eutanásia” nada mais podemos esperar… Realmente há uma ignorância tremenda sobre os cuidados paliativos, sobre o sofrimento e a morte. É que na realidade quem instrui o povo está atrás de uma secretária e não junto dos doentes dia e noite, até ao fim.
    Importante é que existam leis… principalmente leis que defendam quem quer matar da concepção até….que se decida que basta de viver!
    Só consigo mesmo abordar este assunto com algum sarcasmo quando estou sentada no sofá…porque já me basta a dura realidade de cada dia quando estou no meio de quem sofre sem ter escolhido sofrer só porque sim porque não há alternativas senão sofrer e sofrer…ah, agora já pode escolher morrer, esquecia! 😏
    Que o Senhor nos ajude e tenha misericórdia de nós! E que saibamos pedir sempre e só a sabedoria para passar nesta vida apenas a fazer o bem.

  4. Inês Domingos

    Obrigada pela sua partilha.

  5. Paula Almeida

    Obrigada pelo seu testemunho e, principalmente, pelo seu trabalho diário junto de quem sofre. Já tive familiares desse lado, a sofrerem e vocês são fantásticos, maravilhosos. Muito obrigada

  6. Obrigado, Sónia, por este profundo testemunho. Os teus posts são uma inspiração para mim. Bem hajas!

  7. Isabel Miguel

    Que nobre trabalho Sônia! Que Deus esteja sempre contigo, te encoraje para que possas fazer o mesmo àqueles de quem cuidas diariamente! Bem hajas! Beijinho

  8. Manuela França

    Muito obrigada, mesmo, pelo excelente testemunho!

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