Em Caná da Galileia...


A terra que não semeámos

Eram onze da noite de sábado quando conseguimos finalmente deitar os quatro mais novos – em duas camas, num dos quartos da casinha de férias que alugámos na Irlanda. Sentados a seu lado, com os dois mais velhos, fizemos a nossa oração familiar. O dia tinha sido longo, com viagens de carro, avião, autocarro, carro novamente. As emoções tinham sido muitas também… Voltar a ver os avós, os tios e alguns dos 19 primos irlandeses fora suficiente para dissipar todo o cansaço. Agora, abraçados uns aos outros sob o edredão – que o verão irlandês é, digamos, ligeiramente diferente do português -, os nossos filhos fecharam os olhos e escutaram as leituras da missa do dia.

Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único senhor!

Sorri para o Niall, feliz por nos ser dada, naquele sábado especial, uma das nossas leituras preferidas. É nesta leitura do Livro do Deuteronómio, capítulo 6, que Moisés nos deixa o mandamento de contar histórias:

As palavras que hoje te prescrevo ficarão gravadas no teu coração. Hás-de contá-las a teus filhos e delas falarás, quer estando sentado em casa quer andando pelos caminhos, quando te deitas e quando te levantas…

Depois deste simpático mandamento, que tão belos frutos tem dado nas Famílias de Caná, Moisés diz-nos uma coisa muito, muito importante:

Quando o Senhor teu Deus te introduzir na terra que te prometeu, terás grandes e belas cidades que tu não construíste, casas repletas de toda a espécie de bens que tu não acumulaste, cisternas abertas que tu não escavaste, vinhas e olivais que tu não plantaste. Quando tiveres comido até à saciedade, não te esqueças do Senhor…”

Os meninos adormeceram enquanto ainda se proclamava esta Palavra. Mas eu fiquei muito tempo a meditar nela, e não só naquela noite, mas durante todo o dia seguinte, no encontro festivo com os pais do Niall, os seus oito irmãos e oito cunhados e cunhadas e os nossos dezanove sobrinhos. E continuei a meditar nela enquanto caminhava pelas falésias sobre o mar calmo da Irlanda, ou me enterrava na relva verde e macia, ou ainda enquanto contemplava a chuva fresca que caía lá fora.

Foi para isto que nós viemos à Irlanda, claro… Para conhecer a terra que não plantámos, mas que nos sustenta com as suas raízes fortes, os seus troncos seguros, os seus frutos doces. Os nossos filhos conhecem bem as suas raízes portuguesas, e delas recebem abundantes frutos, mas têm pouco contacto com as suas raízes irlandesas. E precisam de as conhecer, para serem gratos. Porque todos nós somos fruto de alguma árvore que outros plantaram e outros regaram, e que Deus fez crescer. Ninguém dá a vida a si mesmo, mas todos a recebemos de outrem, e precisamos de oportunidades para nos darmos conta disso mesmo.

Quantos motivos de contemplação! Estar com a família alargada, escutar as histórias uns dos outros, partilhar gargalhadas infinitas, descobrir parecenças; caminhar pelas falésias sobre o mar, brincar na praia com casacos vestidos e achar que é divertido, nadar com frio mas sentir calor, brincar à chuva e agradecer o mais pequenino raio de sol; falar inglês e descobrir que aqui todos falam inglês (grande surpresa, Sara!); ver o nome Power escrito um pouco por todo o lado, porque aqui, Power há muitos… E contemplar desta forma o dom da vida e da família é aprender a gratidão.

Senhor, não tenho absolutamente nada que não tenha recebido. Enquanto comemos e bebemos até à saciedade da mesa farta que dispuseste para nós nestas férias, no convívio alegre e festivo da família alargada, na beleza inigualável da tua Criação, não permitas que nos esqueçamos de Ti…

2 Comments

  1. Que o Senhor vos guarde nestas férias de reencontro, na ilha do vosso pai. Um beijinho muito grande!

  2. Boas férias!… Beijinhos

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *