Em Caná da Galileia...


Domingo XXVI do Tempo Comum, ano C

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras da missa do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

QUANTO TEMPO DEDICAMOS A OLHAR EM VOLTA?

Neste domingo, o profeta Amós continua a falar-nos do dinheiro. Mas enquanto no domingo passado, a sua denúncia era justíssima, porque se referia aos corruptos e ladrões, hoje ela é surpreendente: Amós denuncia “os que vivem comodamente em Sião e os que se sentem tranquilos”. Não diz, em lugar nenhum, que o fazem à custa dos pobres. O seu comportamento de gente rica pode não estar ao alcance de todos, mas não é indigno: “Deitados em leitos de marfim, comem os cordeiros do rebanho… Improvisam ao som da lira e cantam como David as próprias melodias… Bebem o vinho em grandes taças e perfumam-se…” E contudo, o profeta grita “ai daqueles”!

O mesmo acontece na parábola de Jesus sobre o pobre Lázaro e o rico. Em nenhum momento se diz que o rico era mau, ou que a sua fortuna era ilícita. Apenas sabemos que, à sua porta, jazia Lázaro, e isto parece ser suficiente para que, ao morrer, o rico seja condenado ao Inferno, ficando “em tormentos”.

O que fizeram de tão condenável os ricos da profecia de Amós ou da parábola de Jesus? Perguntemos antes: “O que deixaram de fazer os ricos da profecia de Amós ou da parábola de Jesus?” É que nem sempre pecamos por atos. Pecamos também pela falta deles, isto é, por omissão… O problema mais grave dos ricos, diz Amós, é a tranquilidade com que desfrutam da sua riqueza e a falta de compaixão perante o sofrimento alheio: “Não os aflige a ruína de José”. Também o rico do Evangelho parece ignorar o sofrimento de Lázaro, que jazia mesmo à sua porta.

Em A Alegria do Evangelho, o Papa Francisco afirma: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” (EG nº49) Também nós somos chamados a caminhar ao encontro dos outros, mesmo com erros e quedas, em vez de nos fecharmos no nosso egoísmo, sem nada fazer de errado, mas apodrecendo por dentro numa triste “tranquilidade”.

Talvez não sejamos assim tão ricos. Talvez até nos consideremos financeiramente necessitados. A tentação é a de acusar os realmente ricos, pessoas e países, de insensibilidade e egoísmo. Mas Jesus pregou também para mim e para ti…

Que tempo dedicamos a olhar em volta? Quando o filho conta que um seu amiguinho não leva lanche para a escola porque é pobre; quando na televisão vemos imagens chocantes de dor; quando na casa ao lado alguém grita, ou bate, ou chora, ou adoece, deixamo-nos tomar de sentimentos de compaixão? E serão estes sentimentos suficientes para nos fazer rezar, ali mesmo, por estas pessoas? E depois de rezar, seremos ainda levados a agir? Ou pelo contrário, continuamos “tranquilamente”, como diz o profeta, a cantar as nossas canções, a comer os nossos vitelos, a vestir de linho fino e a fazer as nossas festas, bem instalados no nosso conforto? Este conforto não precisa de ser financeiro. Muitas vezes, é tão somente o conforto de quem se sente realizado na sua vida familiar, profissional e religiosa, ou como diz o Papa, nos “hábitos em que nos sentimos tranquilos” (EG nº 49)

Na sua belíssima carta a Timóteo, Paulo não diz: “Meu filho, não faças mal a ninguém, cuida da tua vida e deixa que os outros se governem”. Pelo contrário: “Tu, homem de Deus, pratica a justiça e a piedade, a fé e a caridade, a perseverança e a mansidão”. O dom da vida não nos foi dado para que não incomodemos ninguém e fiquemos tranquilos no nosso canto – por mais perfeito que ele seja – mas sim para que façamos o bem a todos.

Depois desta vida, há Céu e há Inferno, diz Jesus. Andamos muito esquecidos destas verdades do nosso Credo. A nossa salvação eterna não está garantida. Presente gratuito de Deus, precisa, contudo, de ser acolhida, ou como Paulo diz a Timóteo, conquistada: “Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado.” Precisamente porque Deus é misericordioso, é que no Céu não existe senão misericórdia. Quem a não praticar, não pode ali viver…

Estaremos autorizados a dizer que não o sabíamos? Não. Temos as Escrituras, temos quem no-las explique e quem delas dê testemunho; e temos aquilo que, na história de Jesus, o rico achava que seria revolucionário: Alguém que ressuscitou de entre os mortos, para nos falar do que acontece depois da morte. Esse Alguém não é Lázaro – nem o da parábola, nem sequer o de Betânia, cuja ressurreição causou entre os judeus ainda mais vontade de assassinar Jesus. Esse Alguém é o próprio Deus.

Hora da missa. Há entre mim e o Senhor um abismo maior do que o abismo entre Lázaro e o rico. Bem diz Paulo que Jesus “habita uma luz inacessível, que nenhum homem viu nem pode ver”. E no entanto, aqui na Eucaristia, o milagre acontece… Porque quis o Senhor transpor o abismo e vir ao meu encontro, trazendo a frescura do seu amor para refrescar a minha alma dorida? A sua proximidade é tão grande, que a posso tocar, na hóstia branca que vou receber… Possa eu aqui aprender a transpor abismos e a fazer-me próximo de todos também. Ámen!

 

4 Comments

  1. Pilar Pereira

    No comments. Pelo melhor dos motivos.

  2. Que maravilha de reflexão! Mas quão dura é para os meus comodismos! É impossível ficar indiferente depois de ler esta reflexão… E é mesmo verdade, ninguém pode alegar que desconhece esta realidade! Temos quem no-la explique e sobretudo quem dê testemunho!
    Bem-hajam pelo vosso exemplo e testemunho de vida e de fé.

  3. Obrigada, Teresa, por esta palavra que me veio chamar a fazer algo que andava a evitar há muito tempo e que sabia que o precisava de fazer.
    Que Deus a abençoe.

  4. Isabel Marantes

    Obrigada por esta fantástica reflexão, Teresa. Faz-me pensar numa frase que repetimos muito cá em casa:
    “A única coisa necessária para o triunfo do mal, é que os homens bons não façam nada”! (Edmund Burke)
    Por isso, mãos à obra!
    Um beijinho grande para todos,
    Isabel

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