Em Caná da Galileia...


Domingo XXX do Tempo Comum, ano B

Reflexão semanal, escrita pela Teresa, sobre as leituras do domingo seguinte, publicada no jornal diocesano Correio do Vouga

LARGUEMOS A CAPA

O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo, canta o salmo este domingo. Quantas maravilhas o Senhor fez e continua a fazer em favor do seu povo! Estaremos atentos?

Bartimeu era um pobre cego, sentado à beira do caminho a pedir esmola. Um dia, deu-se conta de que algo diferente se passava. À sua volta, a multidão comprimia-se, numa agitação invulgar. Foi então que lhe contaram que Jesus de Nazaré ia a passar. Bartimeu não hesitou: “Jesus, Filho de David, tem piedade de mim”, gritou e tornou a gritar. Estava decidido a não deixar Jesus passar por ele em vão.

Quantas vezes nos sentamos à beira do caminho, acomodados, achando que tudo nos é devido e que só nos cabe receber? Quantas vezes nos desculpamos que não podemos caminhar, porque crescemos com limitações, ou porque as nossas condições de vida não nos permitem ousar diferente? “Se o meu marido tivesse fé…”, “se eu trabalhasse menos horas…”, “se tivesse mais tempo ou mais dinheiro…” Teremos nós a vontade de Bartimeu de mudar de vida? Jesus passa à nossa beira, mas ao contrário de Bartimeu, nem sempre gritamos com ânsia de conversão. E Ele passa em vão.

A multidão tentou calar Bartimeu, tal como hoje tenta silenciar os cristãos. Mas Bartimeu não se calou, antes reforçou a sua súplica. E porque tanto insistiu, foi atendido: “Chamai-o”, disse Jesus. Era só isso que Bartimeu queria ouvir. De um salto, alcançou o Senhor, deitando fora a capa, pequeno-grande detalhe que Marcos recorda. De nada nos vale aproximarmo-nos de Jesus se não estivermos dispostos a deixar as nossas riquezas, sejam elas muito dinheiro ou uma simples capa, pois não é preciso ser-se rico para se ser agarrado. Ao contrário do Homem Rico, Bartimeu não era de meias-medidas.

“Que queres que Eu te faça?” Perguntou Jesus, como perguntara a Tiago e a João, no domingo anterior. Bartimeu não ambicionava honras, fama ou glória, apenas queria recuperar a sua dignidade e fazer-se de novo ao caminho: “Mestre, que eu veja”. Jesus sabe bem do que precisamos, mas quer que Lho peçamos, uma e outra vez. Quer ter a certeza de que não nos dá nada que não desejemos ardentemente, do dom da fé à verdadeira felicidade. Como também nos quer certos de que não nos dará nada que nos faça mal, se nós o pedirmos por engano. Assim, Jesus não deu aos seus amigos o que eles lhe pediam – tinha-lhes reservado algo muito melhor – mas deu-o a Bartimeu. E nesse instante, Bartimeu “recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho.”

Nunca mais Bartimeu se sentou a pedir esmola. Já não havia qualquer desculpa para não se fazer à estrada, pois o próprio Jesus lhe abria caminho. Era hora de deixar o exílio em que até ali vivera para regressar a Casa, a comunidade cristã, onde Bartimeu deu testemunho do seu encontro até ao fim da vida, ou não fosse o seu nome (ao contrário do nome do Homem Rico) bem conhecido entre os primeiros cristãos, segundo os Evangelhos.

Séculos antes, o profeta Jeremias anunciara este agir de Deus: “Vou trazê-los das terras do Norte e reuni-los dos confins do mundo. Entre eles vêm o cego e o coxo, a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz”. Queria assegurar-nos que não iria reconduzir a Israel apenas os soldados e os “úteis”, mas também aqueles que, pela sua condição de doença ou pela iminência da maternidade, se afiguravam como um peso inútil. Queria assegurar-nos que não vale desculparmo-nos com as nossas limitações ou condições, porque a salvação é mesmo para todos. A decisão final depende unicamente de nós, das desculpas que damos por estarmos ainda sentados a pedir esmola, ou do salto de que somos capazes, deixando para trás a capa.

“Eles partiram com lágrimas nos olhos e Eu vou trazê-los no meio de consolações”, diz o Senhor. É, na verdade, o oposto da história do Homem Rico, que chegou junto de Jesus a correr alegremente, no meio da sua abundância, e se retirou cheio de tristeza. O Bartimeu e todos os Bartimeus da História, pelo contrário, viram o seu sofrimento transformado em alegria no momento em que decidiram seguir Jesus. Porque a recompensa não nos espera apenas do outro lado da vida, na eternidade, mas é-nos oferecida aqui e agora, se apenas nos levantarmos do chão e nos pusermos a caminho.

Hora da missa. Alguns de nós vêm a chorar, trazendo as sementes, outros estão simplesmente sentados à beira da estrada, acomodados na sua indigência espiritual, talvez um pouco distraídos ou rotineiros. Mas diante dos nossos olhos ainda cegos, Jesus vai passar e vai agitar a nossa praça. Teremos a ousadia de gritar bem alto “Jesus, Filho de David, tem piedade de mim”? À nossa frente, o sacerdote, “escolhido de entre os homens” como diz a Carta aos Hebreus, tomará as nossas sementes e oferecê-las-á ao Senhor, como “dons e sacrifícios pelos pecados” de todos nós. “Mestre, que eu veja”, pedimos, adorando a Hóstia Santa. Não deixemos que Jesus passe em vão. Largando as capas, corramos ao seu encontro. E regressaremos a Casa com as mãos cheias de molhos de espigas…

2 Comments

  1. Gosto muito das reflexões que tens feito acerca da Palavra de cada Missa. Muito obrigada por elas!

    • Obrigada pelo comentário, Pilar! Sabe bem saber que o texto é apreciado, pois é o que mais trabalho me dá em todo o site. Desde que comecei a escrever para o Correio do Vouga semanalmente, comecei a valorizar muito mais o esforço dos sacerdotes ao prepararem a sua homilia! Bjs

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